Violência doméstica 01: “Ninguém mete a colher?”

Violência doméstica 01: “Ninguém mete a colher?”

Violência doméstica 01: “Ninguém mete a colher?”

Textão de Luciene Carris*

Quando eu era criança, ouvia o seguinte ditado “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Durante anos fiquei sem entender o porquê de uma frase tão machista ter se tornado tão popular e digna de piadas. Afinal de contas, acreditava eu, inocentemente, que a sociedade avançara em muitas questões. Mulheres ingressaram nas universidades, muitas se formaram e foram ao mercado de trabalho, ocupando espaços até então considerados inalcançáveis nas áreas das ciências e das exatas, sem falar na área de Humanas. Podemos ainda examinar detalhadamente em quais cursos têm mais mulheres matriculadas. Claro que há ainda um longo caminho para a igualdade salarial e para o aumento de oportunidades no mercado. Mas, o ditado evidencia determinados preconceitos e alguns tabus arraigados na nossa sociedade.

A estatística é uma ciência exata que nos apresenta alguns dados relevantes sobre a violência doméstica. De acordo com a pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de 221 mil mulheres procuraram à delegacia para registrar algum tipo de episódio de agressão em 2017 no Brasil. Considera-se que os números estejam subestimados devido à vergonha ou ao medo de denunciar, sem ignorar à dependência financeira e emocional de muitas mulheres. Não é o nosso objetivo detalhar aqui os motivos. Muitos estudiosos vêm se debruçando a respeito a partir de dados e de entrevistas com muitas vítimas. O certo é que inúmeras pesquisas se sucederam depois disso.

Chegamos em 2019, o quadro não mudou. Um discurso do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, ressaltou que a violência contra as mulheres é uma pandemia global e “(…) uma afronta moral a todas as mulheres e meninas, e a todos nós, uma marca vergonhosa em todas as nossas sociedades”. Pois bem, veio a pandemia do Covid-19, o tal do coronavírus que assombra o mundo contemporâneo.

Na página do Senado Federal, em março de 2020, os senadores, pautando-se no aumento das ligações de denúncias para o Ligue 180, alertaram para o aumento do número de violência contra as mulheres em vários estados da federação. Alguns projetos de lei tramitam nesse momento em que escrevo e se intensificam campanhas de conscientização da população e de canais de denúncia, a exemplo do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) que criou a campanha “Quarentena sim! Violência Não”.

Para ONU, o confinamento estaria promovendo tensão e pressão por conta de preocupações básicas em relação à segurança, saúde e dinheiro no mundo todo. Não por acaso estaria ocorrendo uma “pandemia crescente nas sombras” de violência contra mulheres e meninas, decorrente do isolamento e do convívio diário com parceiros violentos. Como solução temporária recomendou-se o distanciamento das vítimas dos agressores a partir da ampliação de abrigos e de linhas de ajuda. Mas, muitos países ainda não têm leis específicas, impera-se ainda a impunidade de tais atos. Outra coisa que se cogita é a real possibilidade da violência doméstica aumentar ainda mais o impacto financeiro na gestão da pandemia. As informações encontram-se disponíveis para todos, são publicadas em diversas mídias, mas a violência permanece – infelizmente – naturalizada no nosso cotidiano.

Recentemente conversei com uma amiga de fora do Rio de Janeiro. O bate-papo fluía bem, discutíamos sobre o nosso futuro, a nossa vida cotidiana em isolamento e a situação do país, quando ela me comunicou algo que me causou um certo espanto. Um velho conhecido falou algo do tipo “como aturaria a fulana (sua esposa) em quarentena, pois ela era insuportável”. Daí já arquitetei na minha mente as possíveis discussões por coisas banais do dia a dia, mas que camuflam outras questões mais graves.

Na minha cabecinha idealista, uma boa relação entre duas pessoas se pauta no respeito, na reciprocidade do afeto e de interesses comuns. Alguns dados revelam que o aumento dos conflitos por conta da convivência de casais confinados pode acarretar uma outra questão já observada na China: o aumento do número de divórcios, menos mal em tempos de crescimento exponencial de abusos.

Uma outra situação narrada é digna de página policial de algum desses folhetins sensacionalistas, mas foi real. Uma briga entre um casal de namorados, resultou na ida da namorada ao hospital, numa aparente cirurgia e numa transfusão de sangue. Em um determinado dia, a moça foi vista caminhando com alguma dificuldade no corredor do edifício para recuperar da operação, uma possível recomendação médica. Para completar, o tal do namorado interditou o acesso ao prédio da filha da ferida para visitá-la. Algo típico nessas situações de violência doméstica é o afastamento dos amigos e de familiares. A pandemia parece que caiu como uma boa desculpa para o agressor. As conversas seguem fluindo naturalmente no prédio através de fofocas e de coisas não-ditas claramente. Parece que a vida segue seu curso natural, cada um com seus problemas pessoais e sobrevivendo à quarentena e ao isolamento. Sendo assim, será que mudou realmente muita coisa?

Em briga de marido e mulher não se mete mesmo a colher?

Neste caso, parece que sim.

*Luciene Carris é mãe do Gabriel de 19 anos, historiadora, sonhadora, dona de casa e apaixonada pela história do Brasil e da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

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