Vida e luto: A fragilidade incide
Textão de Luciene Carris*
De repente, senti um leve toque no meu braço e uma voz distante chamava pelo meu nome, então subitamente abri os olhos. Demorei a me situar, olhei para um lado e, em seguida, para o outro. Depois de algumas frações de segundos me dei conta de que era a mais pura realidade aquela situação. Eu ainda me encontrava naquela sala de cirurgia de um hospital particular na zona sul do Rio de Janeiro. Como de hábito comecei a examinar cada detalhe daquele ambiente. Duas pessoas de uniforme hospitalar conversavam comigo buscando me tranquilizar enfatizando o sucesso da operação. Porém, outra coisa me chamou atenção então mudei o foco, parei de ouvi-los para enumerar a quantidade de lâmpadas daqueles focos cirúrgicos enormes instalados no teto.
Mas era um fuzuê de pessoas circulando apressadamente e conversando entre si que mudei de ideia, decidi quantificar o número total de indivíduos, talvez seis ou sete. No canto da sala, dois homens discutiam animadamente na frente de uma tela de computador sobre a forma pela qual deveriam preencher o tal do relatório médico. Uma melodia conhecida preenchia aquele espaço tão frio e branco. Não era qualquer gênero musical se tratava do bom e velho Blues, que imediatamente me fez recordar a banda de uns conhecidos, a Caravana Cigana do Blues. Voltei a prestar a atenção nas duas figuras que permaneciam paradas e conversando amavelmente ao meu lado. Ainda não percebia a parte inferior do corpo, contudo já me sentia plenamente confiante. Nada poderia dá errado a partir de agora. O maqueiro veio finalmente, e, assim, fui devidamente encaminhada ao meu quarto. Lá permaneci um pouco desorientada por conta da anestesia durante algumas horas e retomei aquele velho costume de examinar cada detalhe quando me deparo num lugar novo desconfortável.
A pandemia modificou a nossa relação com a vida ao redor. Se fosse em outro momento, a cirurgia teria sido organizada de outra forma. Mas não deu. A quarentena e o isolamento nos impuseram incertezas, medo e ansiedade numa nova realidade desconhecida, veio a quebra de uma rotina que supostamente era controlada. Sabemos que a vida está em constante mudança, não é estática, seria um pouco clichê retomar a isso. No meu caso, confrontei-me com a importância da resiliência, ou seja, da “capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças”. A fragilidade dos últimos dias me levou a refletir sobre a vida, a morte e o luto. Relembrando aqui o conhecido antropólogo José Carlos Rodrigues, em seu livro O Tabu da morte (2006:17), afirmou que na história da humanidade “os homens nascem, os homens morrem”. Ao longo dos tempos, a morte foi uma preocupação de diferentes sociedades e os ritos funerários sempre estiveram marcados por simbologias e significações. Mas veio o Covid-19, com o vírus os rituais tradicionais de nascimento e os funerais não estão sendo vivenciados como a sociedade brasileira estava habituada a realizar em suas diferentes matrizes religiosas.
Enquanto procuro finalizar esse pequeno texto reflexivo apenas três dias depois da operação, novas indagações me ocorrem. Observei com muita atenção a atuação daqueles profissionais da saúde e a tentativa deles de manter algum grau de equilíbrio mental e de positividade perante a pandemia. Mas alguns estudiosos alertam para uma possível recessão financeira mundial sem precedentes, me pergunto em que nível estará a saúde mental do brasileiro para lidar com novas adversidades. A resposta não é tão simples. Por ora, encerro essa breve reflexão com a poesia de um trecho da música do cantor e compositor Gonzaguinha “O que é? O que é?” de 1982.
“E a vida o que é?
Diga lá, meu irmão
Ela é a batida de um coração
Ela é uma doce ilusão
Êh! Ôh!
E a vida
Ela é amar a vida ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é?
Meu irmão
Há quem fale
Que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo”
* Luciene Carris é historiadora e escritora.