Tempos de cólera
Textão de Luciene Carris
A humanidade é uma abstração que engloba um conjunto de características comuns a todos os Homens, que o tornaria diferente dos outros animais, isso em um sentido mais literal. Piedade, simpatia, solidariedade, compreensão, tolerância suspostamente nos tornariam diferentes de outros seres não dotados da “razão”. Mas de onde vem tanto ódio dos últimos tempos de pandemia? Ficamos absortos com tantas imagens difundidas nas redes sociais e nos veículos de comunicação. Posso enumerar mais de uma dezena delas ocorridas só em território nacional que ganharam uma projeção significativa.
De repente, me veio a lembrança da médica agredida fisicamente no bairro do Grajaú, no Rio de Janeiro, por um grupo de indivíduos, que pela sua função deveria zelar pela segurança pública. As imagens grotescas foram registradas pelas câmeras e ainda reverberam na minha mente. Outra recordação recente é a manifestação pacífica de enfermeiros ocorrida em Brasília, também hostilizada, tal qual a ocorrida na praia de Copacabana, onde um senhor derrubou as cruzes em homenagem às vítimas do Covid-19. Jornalistas, fotógrafos, médicos, intelectuais, professores, cientistas têm sido alvos constantes de manifestações de ódio, que não se restringem às mensagens escritas por anônimos em algum post na internet. Pelo contrário, extrapola às redes sociais e se concretiza com a perseguição física, a ameaça e a destruição de suas reputações.
De todo, podemos observar que é algo global. O que acontece no mundo? Pois é tanto ódio disseminado envolvendo preconceitos como a xenofobia, a misoginia, o racismo, ao lado da disseminação de notícias falsas que confundem a opinião pública e amplificam a controvérsia. Não é bem uma novidade, a intolerância acompanha a história, mas parece que a pandemia abriu a “caixa de pandora” dos males do mundo, que fica difícil de acreditar no tal do “novo normal”. Mas afinal o que seria o “novo normal”?
De acordo com alguns, é um conceito definido por um padrão de vida assegurado pela ideia de proteção, de continuidade e de segurança, portanto, da manutenção da nossa sobrevivência humana. Então, a busca por esta “normalidade” geraria ansiedade, um certo mal-estar na civilização. E o novo? Bom, parece que esse sempre causou quebra de certos paradigmas. Ao que parece, o contexto da pandemia soa favorável às manifestações de ódio, assim como para “eliminação” daqueles indivíduos não desejáveis para determinados segmentos extremistas da sociedade, que delinearam um novo mundo de acordo com suas convicções morais, éticas ou religiosas, ou, simplesmente por interesses econômicos.
Seguindo esta lógica, tais indivíduos poderiam ser “eliminados”, pelo menos virtualmente, e, paralelamente, teriam as suas vidas marcadas por notícias falsas impulsionadas nas redes sociais e por mensagens difundidas pelo celular. Registros difíceis de apagar, pois se propagam de uma forma veloz e incontrolável. Em meio a tudo isso, se discute os limites da liberdade de expressão e a responsabilidade legal de tais redes sociais pela disseminação de informações questionáveis.
Podemos traçar aqui um paralelo com o poder que o rádio, o cinema, e, posteriormente, a televisão teve outrora. Mas as redes sociais têm um poder aparentemente incontrolável diferentemente das mídias tradicionais. Anteriormente, o jornal ou o rádio poderia ser empastelado, ou seja, silenciado com a destruição de sua sede, na tentativa de silenciar opositores. Na história da imprensa brasileira, os exemplos são vários como as tentativas de empastelamento do Jornal do Brasil.
Uma dessas represáliasocorreu por ocasião do movimento político-militar que determinou o fim da Primeira República (1889-1930) e levou Getúlio Vargas ao poder. Durante a década de 1930, o cinema e o rádio se constituíam novas formas de tecnologias, que se tornaram muito populares. Não por acaso foram utilizadas por regimes autoritários, que souberam explorar a imprensa, a literatura, o rádio e o teatro. Assim, os meios de comunicação serviram para propagar discursos políticos que enalteciam seus líderes, enquanto demonizavam opositores, judeus, ciganos, deficientes físicos, comunistas, poloneses, etecetera, como foi o caso do regime nazista alemão. Então, em consequência a tantos discursos e manifestações de ódio, será que a história se repete aqui como uma tragédia ou uma farsa? Talvez não, mas traz à tona inúmeras reflexões e apreensões humanamente legítimas.
Luciene Carris é historiadora e escritora.