Subjetividade 03: Laços invisíveis

Subjetividade 03: Laços invisíveis

Subjetividade 03: Laços invisíveis

Textão de Luciene Carris*

Desde que a quarentena começou no Rio de Janeiro em março de 2020, algumas regras de convívio social mudaram em nome da saúde pública. Mas tais imposições não têm sido tão bem assim aceitas. Por razões diversas observa-se o descumprimento do que se tornou atualmente um consenso universal – o isolamento social e a quarentena. Por necessidade econômica, muitas pessoas não têm o privilégio de se isolar em casa se protegendo de um possível contágio. Nessa direção observa-se que a pandemia tem evidenciado a desigualdade socioeconômica e de gênero no país e no mundo.

Outros indivíduos relativizam a importância da quarentena como podemos observar em diversas notícias espalhadas em inúmeros periódicos. Especialistas discutem a necessidade da conscientização da população, bem como questionam a arbitrariedade da imposição e o possível cerceamento das liberdades individuais. O fato é que até o presente momento não se encontrou uma outra forma diversa de garantir a segurança sanitária da população daquelas recomendações preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para enfrentar um inimigo invisível: o Covid-19.

Mas até onde vai a nossa liberdade de ir e vir me levou a outras breves reflexões, pois o debate sobre o combate ao vírus se estende das esferas governamentais até ao cidadão comum. Inúmeros são os relatos de pessoas nos mais variados cantos do país que menosprezam a importância da quarentena. Em periódicos e nas mídias sociais encontramos uma abundância de imagens de pessoas aglomeradas em bares ou pracinhas. Recentemente tivemos uma notícia da inusitada da festa organizada por uma famosa “influencer digital”, apesar do aumento dos casos registrados do coronavírus. A difusão dos registros do evento acarretou uma enxurrada de críticas e ao rompimento de inúmeros contratos milionários após o ocorrido. Atitude semelhante foi registrada pela cantora Madonna que participou de uma festa de um famoso fotógrafo em Nova York, tal postura também foi duramente repreendida. O certo é que famosos ou não têm tido comportamentos semelhantes.

É inquestionável que o atual contexto da pandemia trouxe consequências significativas para a sociedade. Entretanto, a forma pela qual as pessoas estão vivenciando é particular e subjetiva, pois diz respeito a relação do indivíduo com a coletividade e com a sua história de vida. Cada indivíduo lida com o mundo exterior a partir de seus valores e princípios. Mas o ser humano vive numa sociedade, o que implica a interação social e a dependência com outro semelhante, o que me remeteu a uma passagem da obra do sociólogo alemão Norbert Elias. No livro A sociedade dos indivíduos, ele afirmou que “(…) cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparentemente desvinculados na rua, está ligado a outra por laços invisíveis, sejam estes laços de trabalhos e propriedade, sejam de instintos e de afetos” (1994: 22). A partir disso, considerou em outro momento que a história da humanidade é “uma cadeia ininterrupta de pais e filhos, os quais, por sua vez, se tornam pais”. Um parêntese aqui – posso ressalvar ainda que nem todos desejam, mas grande parcela se torna pais.

Então me indago qual futuro queremos deixar para as crianças e os jovens? Pois, quando se toma uma decisão subjetiva de sair de máscara ou sem ou de se aglomerar por aí e não obedecer às recomendações sensatas de cientistas estamos fazendo escolhas. Mas são escolhas individuais que têm consequências e efeitos diretos na coletividade. Será que nesse ponto a subjetividade atrapalha o interesse coletivo ou de uma vontade geral? A dimensão da alteridade é o que nos difere de outras espécies animais. A nossa humanidade se relaciona com essa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, no lugar da diferença, de perceber a dor e a aflição do outro. Talvez seja o caminho para uma sociedade mais democrática e justa.

Possivelmente uma das questões a serem repensadas após a pandemia é a ideia da sociedade que conhecemos, como transformá-la e o que esperamos dela. Sociedade é um substantivo feminino definido de acordo com o dicionário como “agrupamento de seres que convivem em estado gregário e em colaboração mútua” ou ainda como “grupo humano que habita em certo tempo e espação, seguindo um padrão comum; coletividade”. É uma expressão passada de geração a geração que ouvimos desde tenra infância sem nos indagarmos. Mas será que realmente a entendemos? De todo modo, os laços invisíveis que mantêm a nossa interdependência continuarão existindo. Mas cabe ainda aqui um outro questionamento: será que esses laços serão os mesmos?

*Luciene Carris é historiadora e escritora.

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