RIO 03: Uma cidade vazia e silenciosa
Textão de Luciene Carris*
Não é a primeira vez na história do Rio de Janeiro que a população é acometida por uma doença funesta como o Covid-19. A “cidade maravilhosa”, desde tempos remotos, já era conhecida pela sua característica pestilenta. A chegada dos europeus no Novo Mundo originou a gripe, o sarampo e a varíola que ceifaram o destino de milhões da população nativa em um curto período de tempo. A situação não mudou de figura ao longo dos séculos. Pelo contrário. Chegamos ao século XIX e novas moléstias somam-se às antigas que já afligiam a população periodicamente. A tuberculose, o tifo, a rubéola, a varíola, a cólera e as gripes continuam dizimando milhares de vidas. Em 1899, a peste bubônica alcançouo Brasil através do porto de Santos.
Com intuito de enfrentar a doença foram criados os laboratórios em São Paulo e no Rio de Janeiro, os atuais Instituto Butantã e Instituto Oswaldo Cruz respectivamente. Em 1904, ocorria nas ruas da cidade uma famosa revolta contra a vacinação obrigatória da varíola. A indignação era quase que unânime. Havia uma obstinada resistência contra a intromissão de funcionários do Estado nas residências. A possibilidade da vacinação das esposas e das filhas deixavam indignados os pais de família da época, sem deixar de mencionar a desinformação sobre a doença e o autoritarismo de tal prática.
Há 102 anos, uma nova moléstia afligiu não só a cidade como várias partes do globo terrestre, tratava-se da gripe espanhola. A doença de alta letalidade transformou-se numa verdadeira pandemia no último ano da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Não há um cálculo exato, estipula-se que cerca de 50 milhões de pessoas vieram a óbito em todo mundo. Curiosamente a enfermidade recebeu a alcunha de espanhola pela simples razão da Espanha divulgar o número de casos, contrapondo a censura praticada por outros países ao longo da guerra. De uma gripe comum com sintomas de dores de cabeça e febre, o quadro evoluía para uma pneumonia grave e para uma situação de baixa oxigenação, ocasionando infelizmente o falecimento do doente. Assim, entre 1918 e 1920, milhões de pessoas foram infectadas em todo globo. Só no Rio de Janeiro no auge da pandemia, entre outubro e dezembro de 1918, foram registradas cerca de 15 mil mortes.
Décadas se sucederam com episódios de variadas epidemias até o momento em que fomos surpreendidos com uma pandemia que se originou numa cidade da China. No dia 05 de março de 2020, foi notificado pela página oficial da Fundação Oswaldo Cruz o primeiro caso diagnosticado de Covid-19 no Rio de Janeiro, era uma jovem turista que voltara da região da Lombardia na Itália. De lá para cá, os casos se multiplicaram e no dia de hoje contabilizam-se cerca de 26.672 de casos confirmados e 2.852 óbitos no Rio de Janeiro. Tal como ocorreu na década de 1920, a pandemia deixou a cidade vazia e silenciosa, pelo menos uma parte dela. No início, as notícias sobre a doença eram ignoradas, tratadas com certo descaso. A desinformação era geral.
Pouco a pouco a situação se alterou. As escolas e as instituições públicas foram fechadas, o serviço público de saúde se tornou caótico. Além disso, os mais vulneráveis cidadãos foram os mais atingidos. Não por acaso muitos estudiosos constatam alguns paralelos entre as duas pandemias. Por outro lado, apesar das informações incipientes sobre a influenza, naquele momento, ao que parece, havia uma coordenação mais clara das esferas governamentais do que podemos observar nos dias atuais, quando observamos que o debate político ganha mais força do que propriamente políticas públicas uníssonas de combate ao vírus entre as esferas municipais, estaduais e federais.
Recentemente compreendemos que o isolamento social e a quarentena são as medidas preventivas mais eficazes de combate ao coronavírus. Mas sabemos que nem todos podem se dar ao luxo de se isolar em suas respectivas casas. Muitos precisam trabalhar para garantir o sustento de cada dia. Vários são os relatos de transportes lotados por razão da necessidade do deslocamento ao trabalho. Além disso, é complicado o isolamento social quando a família é extensa e a casa pequena. Soma-se a isso o desencontro de informações que tem proporcionado o afrouxamento de tais medidas e o relativismo da mortalidade do vírus.
Recentemente, uma querida conhecida, uma aluna moradora da comunidade da Rocinha relatou a dificuldade de se aplicar ali as recomendações da Organização Mundial da Saúde. O relato estarrecedor é importante e elucidativo, pois reflete coerentemente a clara divisão socioeconômica que a pandemia escancara no Rio de Janeiro e que se estende para o resto do país. Em que pese o quadro negativo descrito, encerro com uma breve reflexão da pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, a historiadora Gisele Sanglard sobre a moléstia de 1918. Nas suas palavras, “(…) uma epidemia também é momento de solidariedade.
A preocupação com a saúde pautou as ações de médicos e da sociedade civil frente à pandemia: abriram-se hospitais de campanha, enfermarias provisórias e diversas instituições de saúde concentraram suas atuações no atendimento aos acometidos pela gripe espanhola (…)”. Quiçá em breve concorremos por uma atuação mais assertiva de enfrentamento ao Covid-19. Além disso, quem sabe a solidariedade do morador do Rio de Janeiro se dissemine através de um compromisso efetivo de ajuda e de auxílio ao próximo, como tem sido noticiado em alguns momentos. Quem sabe também a cidade retome aquela atmosfera anterior, quando podíamos dispor tranquilamente do sol ao caminhar pelas ruas da cidade sem o receio de um inimigo invisível. Por ora, são apenas expectativas e devaneios de uma carioca em isolamento.
* Luciene Carris é historiadora e escritora.