Não é mi mi mi

Não é mi mi mi

Não é mi mi mi

Textão de Luciene Carris

No último 31 de julho, o país foi novamente surpreendido com uma notícia que ganhou ampla repercussão nos veículos da imprensa. Um jovem rapaz, motoboy de um desses aplicativos de delivery, foi alvo de racismo e de palavras que denotavam também preconceito socioeconômico. Depois da repercussão negativa se justificou – curiosamente – que o agressor possuía uma doença mental, daí, portanto, àquele tipo de comportamento.

Em outra oportunidade, um outro jovem, também negro, foi agredido pelos seguranças à paisana de um shopping da zona norte do Rio de Janeiro, depois de deixar uma loja com o presente que comprara por ocasião do dia dos pais. Enquanto os seguranças uniformizados continuaram assistindo a cena paralisados, o jovem tentava argumentar que estava com a nota fiscal no bolso de sua calça.

Em uma determinada lanchonete do Distrito Federal, um delegado negro foi alvo de injúria racial. O racista empurrou e ofendeu o delegado chamando-o de “macaco”, mas, veio a ser preso algumas horas depois pela polícia militar. Uma cantora de Brasília não foi contratada para cantar em uma festa de casamento, porque se recusou a alisar os seus cabelos, uma das condições para sua a contratação era exatamente essa. Poderia enumerar aqui uma série de situações que estão disponíveis nas mídias digitais, assim, para quem quiser ler é só ir até o Google e pesquisar aleatoriamente sobre o tema, aparecerá uma infinidade de matérias e notícias a respeito.

Desde tenra infância somos educados na escola através dos livros didáticos que a formação social do brasileiro é marcada pela miscigenação do negro, do índio e do branco europeu. Além disso, até recentemente, pairava no imaginário popular um discurso amplamente aceito e difundido na nossa sociedade do mito do paradigma da democracia racial, então atribuído ao sociólogo Gilberto Freyre, autor da obra clássica Casa Grande e Senzala, publicada em 1933. O brasilianista Thomas Skidmore, autor de Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, constatou que a ideologia do branqueamento racial da sociedade aparecia como uma solução viável para elite brasileira, que se pautou na democracia racial para eclipsar diversas formas de opressão racial.

A polêmica ainda se perpetua com a aplicação de diferentes terminologias e suas aplicações em diversos contextos: negro, pardo, mulato e preto, que carregam na forma pela qual são empregados um sentido pejorativo e é, geralmente, assim que o brasileiro ainda denomina um ou outro. Desde 2001, passou a ser adotado no mundo o termo afrodescendente, logo após a realização de Conferência de Durban, na África do Sul, sobre racismo e xenofobia.

Por outro lado, a nossa Constituição Federal de 1988, assim como outras normas posteriores, garante a igualdade de oportunidades e a defesa de seus direitos étnicos individuais e coletivos. Bom, pelo menos no papel está muito bem escrito. É uma luta diária para que a letra da Lei seja realmente aplicada e absorvida pelos vários segmentos da nossa sociedade.

A pandemia do Covid-19 evidenciou, o que muitos de nós já sabíamos, o racismo estrutural e a péssima condição de vida da população negra no país, quando se observa que os direitos fundamentais não são garantidos. A desigualdade socioeconômica, por si só, não explica a disparidade e a marginalização histórica a qual estão inseridos, bem como a assimetria na taxa de contaminação.

Não se trata de vitimismo ou de um mero “mi mi mi” como alguns têm apontado. Quando se observa a ausência de políticas públicas eficazes, algo que parece já bem cristalizado como um preconceito institucional. De fato, podemos recuperar aqui o conceito de necropolítica concebida pelo filósofo Achille Mbembe, quando se verifica o descaso, a agressão, a violência e o genocídio das vidas negras e pobres na sociedade brasileira.

Segundo o jornalista e professor Edson Cardoso, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado, o racismo atravessa a nossa sociedade historicamente e a prática de estigmatizar o outro, desumaniza, animaliza sujeitos, bem como se insere no imaginário social do brasileiro, obstruindo a possibilidade de uma sociedade mais justa e democrática. Em tempos de crise sanitária mundial, observamos o aumento da violência, do discurso de ódio, do preconceito e o aparecimento de governos autoritários em diversos pontos do globo. É nesse sentido que o autoritarismo e o racismo aparecem como faces do mesmo ódio, da mesma moeda, misturados em um saco-de-gato em que se transformou o ano de 2020.

Luciene Carris é historiadora e escritora.

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