Luto: Um sopro de vida

Luto: Um sopro de vida

Luto: Um sopro de vida

Textão de Luciene Carris*

De repente, mais que de repente Alberto fechou os olhos e não mais abriu. Passaram-se algumas semanas desde que ele havia sido internado em decorrência dos problemas respiratórios consequentes do Covid-19. Alberto morava numa comunidade localizada na zona sul carioca. Pouco tempo antes do isolamento se tornar uma regra fundamental da saúde pública da cidade, era comum observar turistas de várias partes do mundo passeando pelas diferentes vielas. Não eram poucos. Pelo contrário, eram muitas as pessoas que circulavam por lá.

O tal turismo de favela fazia sucesso, apesar da espetacularização de áreas segregadas da cidade causarem uma certa controvérsia. Alberto não entendia muito bem sobre o que falavam, a barreira linguística se impunha, mas quando encontrava um ou outro estrangeiro fazia questão de sorrir e de tentar se comunicar da melhor forma cordial. Era importante para ele uma visão positiva daquele lugar. Ele costumava se indignar com a imagem negativa que era amplamente reproduzida. Nascido e criado ali, ele sabia de todas as dificuldades, viu tudo aquilo ao seu redor se transformar. A comunidade crescia, mas os laços de afeto e de solidariedade permaneciam sólidos, eram vínculos que para ele haviam se perdido pelo povo do asfalto.

Era uma terça-feira à tarde, quando a sua sobrinha Maria Clara recebeu um telefonema. A família aguardava notícias de seu familiar. Visitas foram interditadas por conta do vírus. A família e seus amigos viviam aflitos e ansiosos com cada som que tocava em seu aparelho de celular. Todos aguardavam evidentemente por uma boa notícia. Em poucos dias, o seu tio começou a se sentir fisicamente muito mal. Não foi por imprudência, Alberto se dirigiu à emergência de um hospital público, mas tão logo foi mandado de volta para a sua casa. De uma aparente gripezinha comum, os sintomas foram gradualmente piorando. A sua saúde piorava.

Maria Clara atendeu, ouviu atentamente cada palavra que lhe era transmitida por um funcionário do hospital. Não pode se conter, os olhos começaram a lacrimejar. Então, todos ali presentes compreenderam do que se tratava. A surpresa era que o tio Alberto era um homem robusto, saudável, alto, muito alegre e simpático, um bom pai e querido pelos seus colegas no trabalho e por toda a comunidade. Exasperada Maria Clara continuava ali parada com o celular em mãos olhando para o vazio da parede branca da sala de jantar. Ela esqueceu de quem estava ao seu redor. Imagens diversas atravessavam o seu pensamento, fragmentos de muitas lembranças e uma tristeza consumia todo os pontos do seu corpo.

Decisões deveriam ser tomadas sobre o enterro. Não havia a menor possibilidade para organizar um velório ou qualquer despedida daquele homem. Todos se abraçaram, botaram a mão no rosto para enxugar as lágrimas que desciam. Uma tia começou a rezar e pedir a todos os santos para que tio Alberto tivesse uma boa passagem. Todos rezaram juntos. Custavam a acreditar que aquilo realmente tinha acontecido. Não era uma novidade a pandemia. Afinal de contas se ouvia falar pelos rádios e pelos jornais de outras pessoas como seu tio Alberto, mas ainda eram crédulos. Era inimaginável a possibilidade de acontecer o inesperado com alguém assim tão próximo.

Apesar dos números alarmantes de óbitos diários na Itália, aquilo ainda era inimaginável desse lado do Oceano Atlântico. Pelo menos até aquele momento. Aquelas cenas de caminhões militares empilhados de corpos que eram retransmitidas pelos jornais televisivos não era ainda uma realidade possível. O cotidiano da comunidade seguia tranquilamente. O comércio funcionava. Não havia o uso regular de máscaras. As pessoas transitavam tranquilamente de um lado para outro nas ruas estreitas da comunidade. Umas se dirigiam para os seus compromissos de trabalho, outras ao mercado ou para resolver algum problema burocrático ou simplesmente passeavam. A vida seguia sem esse tipo de preocupação. A rotina diária se restringia ao sustento de cada dia. As crianças iam à escola, os pais trabalhavam. Mas a questão da segurança sempre foi um dos maiores problemas e trazia sempre consternação e medo aos seus moradores.

Tio Alberto foi cremado. Nem Maria Clara nem qualquer outro parente puderam estar presentes. Ela esquece temporariamente da dor e da amargura. Fantasia que seu tio pode adentrar a porta da sala com um sorriso estampado e contar alguma estória engraçada ocorrida no dia. Ela ainda se ressente da impossibilidade do direito natural a uma despedida e de beijá-lo pela última vez. Poucos meses se passaram da morte negligenciada de seu tio. Outro dia ela me revelou que a quarentena na comunidade era inviável por várias razões. Ela me indagou se eu realmente achava possível tal regra funcionar com tantas pessoas morando num imóvel pequeno. As pessoas precisam trabalhar retrucou, então elas necessitam transitar. Além disso, um outro sintoma. Sair por aí pelas vielas também é uma forma de fuga da dura realidade.

Muito se tem escrito sobre a experiência do luto e como superar a perda de um ente querido. Porém, a pandemia do Covid-19 tem evidenciado a impossibilidade de realizar os tradicionais rituais, que trazem algum alento às pessoas. A pequena crônica é baseada em fatos reais que ocorreram há poucos meses. Procurei preservar os nomes dos personagens reais aqui citados em respeito à memória e à figura do “tio Alberto”. Ele não virou estatística. É muito comum atualmente pensarmos enquanto números, pois somos diariamente bombardeados com essas informações pelas mídias sociais e pelos jornais. As histórias se repetem todos os dias o que confere um aparente distanciamento, impassibilidade ou até uma sensação de desumanização. Vidas têm sido lesadas e negligenciadas até a morte. Nem o enlutamento é possível. Mas a vida é passível de luto, a finitude de todos nós é prevista sem dúvida. Contudo, no atual contexto muitas perdas poderiam ser evitadas.

A história de Alberto é a história de muitos cidadãos brasileiros vitimados pelo Covid-19. Maria Clara ainda me informou que a comunidade se fortaleceu com a mobilização de seus moradores. Não por acaso até ela se envolveu em alguns desses projetos. A sensação de precariedade da vida anterior já era espantosa. Nesta conjuntura da pandemia, foram surgindo algumas iniciativas comunitárias como campanhas preventivas de conscientização e de doação de comida para os mais vulneráveis.

Não foi fácil elaborar até aqui essa narrativa. A voz Maria Clara ainda ecoa na minha mente enquanto escrevo estas últimas linhas. Tomo a liberdade de recuperar uma passagem muito oportuna do romance Um sopro de vida da escritora Clarice Lispector: “(…) isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos” (1978:04).

* Luciene Carris é historiadora e escritora.

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