Livros 02: A minha bolsa amarela

Livros 02: A minha bolsa amarela

Livros 02: A minha bolsa amarela

Textão de Luciene Carris*

De acordo com a pesquisa quadrienal publicada em 2016 pelo Instituto Pró-livro a estimativa do público leitor no Brasil era de 104, 7 milhões. No primeiro momento, a cifra até parece positiva uma vez que a população brasileira atingiu cerca de 210 milhões de habitantes. Contudo, a metodologia empregada no questionário considera como leitor àqueles indivíduos que afirmaram terem lido pelo menos um trecho de um livro qualquer. A média anual é de 4,96 livros por leitor, mas apenas 2,43 são lidos até o final. Dentre os gêneros examinados, a Bíblia é o livro mais lido por 42 % da população seguido pelos livros religiosos, contos e romances. Um outro aspecto interessante levantado em relação ao público leitor diz respeito a faixa etária.

Os mais jovens lêem mais, provavelmente devido a cultura escolar de incentivo à leitura no ensino fundamental. Mas a situação muda de figura a partir dos 18 anos. A partir daí, a taxa decresce consideravelmente. Não me surpreendeu ter lido que 52% da população na faixa etária entre 40 e 49 anos se declarou como não leitor. Porém, afinal de contas qual importância de trazer esses dados? Qual a importância desse tipo de estatística? Qual a importância do livro e da leitura para o país?

Parecem perguntas ingênuas ou desprovidas de sentido. Confidencio ao leitor que o primeiro livro que eu li com muito prazer na vida foi A bolsa amarela de Lygia Bojunga Nunes publicado em 1976, aliás, o ano em que eu nasci. Talvez seja obra do acaso, uma mera coincidência, talvez não. Foi um livro indicado pela professora da minha turma no antigo primário. Ainda me recordo daquela capa com a tal da bolsa amarela, de algumas imagens nas páginas e do prazer que aquelas tardes de leitura me trouxeram. Tempos depois fui pesquisar sobre a relevância da obra e sobre quem era a autora.

A literatura da escritora Lygia Bojunga Nunes preconiza a valorização de sujeitos críticos e formadores de opinião. Daí entendi o porquê de ter me identificado com a protagonista da história. Raquel, personagem-protagonista e narradora, era uma menina que morava com uma família patriarcal tradicional. Cheia de criatividade, de vontades e de anseios muitas vezes reprimidos, pois para aquela família “criança não tem querer”. Acredito que alguém já tenha escutado tal afirmação por aí na infância!

Pois bem, a menina ganha de presente uma bolsa amarela de uma tia e decide guardar ou esconder seus desejos dentro dela. Ela desejava ter nascido menino, pois Raquel sentia na pele os limites impostos às meninas como ela. Ela desejava ser grande, pois na condição de criança ela se sentia impedida de muitas coisas e não era ouvida pelos mais velhos. Ela desejava ser escritora, pois assim poderia dar asas à imaginação e recriar o seu mundo. Conforme os desejos aumentam, a bolsa vai se tornando mais pesada. Ela decide ainda guardar dentro dela amigos imaginários e objetos.

É uma aventura fantástica marcada pela mistura de elementos reais do cotidiano e a fantasia, uma característica da obra literária da escritora. O livro também pode ser lido como um espelho da história do Brasil recente marcado pelo autoritarismo, pelo preconceito etário e pela desigualdade de gênero. A estória aparentemente pueril narrada pela Raquel completou 43 anos. Ao final do livro, podemos refletir sobre os resquícios do silenciamento imposto às crianças ao longo da História e a clara identificação da trama entre muitos leitores sejam crianças ou adultos.

Não sei até que ponto os brasileiros em quarentena estão conseguindo se dedicar à leitura e qual a sua relação com os livros. Para alguns conhecidos a pandemia do Covid-19 tem atrapalhado a sua concentração, o que é perfeitamente aceitável. Por outro lado, observo pessoas colocando a leitura em dia com uma rotina bem definida de obras previamente escolhidas. Muitos se sentem até estimulados. Na atual conjuntura em que somos bombardeados com notícias sobre o coronavírus, o livro pode nos trazer um alento.

O aspecto lúdico e o mundo da fantasia podem contribuir positivamente para atravessar esse trágico período, bem como para incentivar reflexões sobre aspectos das nossas vidas e sobre as diversas questões do mundo contemporâneo. Os benefícios da leitura são inúmeros. Considero que pode servir como entretenimento para toda a família e como o momento ideal de incentivo aos pequenos.

Quem sabe o jovem leitor de hoje se lembrará de livros lidos durante a pandemia como esse que eu li há mais de trinta anos? Quem sabe o mundo da fantasia o fará refletir sobre outras realidades possíveis? Quem sabe tais leituras e reflexões contribuam para um mundo um pouco melhor do que o atual?

Luciene Carris é historiadora e escritora.

0 Comentários

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*