Liberdade de Expressão 02: Essa tal da liberdade…
Textão de Luciene Carris*
Atravessamos um período conturbado com a pandemia do Covid-19, que trouxe o medo e a insegurança em relação ao contágio do vírus. Um sentimento natural, pois, diz respeito à sobrevivência humana. O coronavírus desequilibrou a economia mundial, pelo menos temporariamente. Não sabemos quando o vírus esvaecerá do território nacional. Alguns poucos países têm relatado a ausência de óbitos decorrentes deste vírus como a Nova Zelândia. Não é o caso brasileiro. No Rio de Janeiro, se contabilizou 74.373 casos confirmados, além de cerca de 7.138 óbitos. Em todo território nacional são 802.828 casos.
Mas a recessão econômica é praticamente certa segundo alguns estudiosos do tema. Um novo horizonte parece apontar para o desemprego, o individualismo, a desigualdade social, a exclusão social, a concentração de renda e o autoritarismo. Não parece uma novidade essa conjuntura. Já vimos em outros períodos da História. Os ataques à liberdade de expressão e ao Parlamento, por exemplo, contribuíram para uma ruptura democrática que desencadeou a ascensão do fascismo na Itália de Benito Mussolini. A pandemia pode ter precipitado a crise do sistema capitalista. Podemos incluir, a limitação e os usos da liberdade de expressão.
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem constatado a repressão à liberdade de expressão. Por sua vez, a liberdade da imprensa vem sendo cerceada em inúmeros países da Ásia. Em tais países têm sido criadas leis para deter o debate público, bem como limitar as críticas ao governo e a ampliação da repressão à liberdade de expressão. Pessoas têm sido presas e reprimidas arbitrariamente por compartilharem informações e opiniões sobre a pandemia. Na América Latina, vem ocorrendo um declínio à liberdade de imprensa.
No Brasil, a situação não tem sido diferente. São inúmeros os relatos de ataques ao Parlamento, aos profissionais do jornalismo das redes de televisão ou das rádios ou ainda a qualquer outro indivíduo célebre ou desconhecido que emita alguma opinião contrária aos interesses de determinados grupos. Os ataques visam desmoralizar ou desqualificar moralmente o adversário. As mulheres têm sido os alvos mais vulneráveis. O cenário de instabilidade política e de crise das instituições democráticas contribuem ao cerceamento da liberdade de expressão. Mas um outro movimento observado é a autocensura, o recolhimento.
Pois bem, vejamos alguns exemplos desse contexto singular e caótico que atravessamos. Uma homenagem organizada pela ONG Rio da Paz, na praia de Copacabana aos mortos pelo Covid-19, foi atacada por um cidadão carioca insatisfeito com a manifestação. Um dos pais, que perdeu um filho, se encontrava ali presente e recolocou o símbolo da manifestação que era uma cruz fincada na areia, enquanto ouvia as bravatas do indivíduo. Uma professora afrodescendente que participava de um seminário virtual sobre o “Atlântico Negro” de uma determinada universidade sofreu um ataque cibernético racista massivo, o que impediu a sua fala. Enquanto isso, uma outra matéria recentemente publicada informa sobre a criação no Google de 204 páginas neonazistas no Brasil em apenas um mês, o que bem demonstra o crescimento de grupos extremistas no território nacional.
Dito tudo isto, constata-se ultimamente o acirramento da intolerância, do preconceito, do negacionismo científico e do anti-intelectualismo. A difusão das fake-news tem sido defendida baseando-se no argumento constitucional de defesa da liberdade de expressão. Vale registrar que a epidemia de notícias falsas contribui para que as pessoas tomem decisões equivocadas, geralmente pautadas na emoção e em crenças particulares ignorando a objetividade. Bom, tem sido assim nos últimos tempos. Mas isto também não é uma novidade, foi uma estratégia utilizada por governos autoritários anteriormente.
O certo é que a atual realidade em certa medida tem se assemelhado com àquela distopia descrita no romance ficcional 1984 de George Oswell publicado em 1949. Uma obra moderna que até pouco tempo parecia demasiadamente distante. Trata-se de um mundo caracterizado por um ambiente sombrio de vigilância e de distorção da verdade, cujo lema do partido daquele governo totalitário era: “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado”.
Ou ainda podemos apontar aqui para o romance clássico da literatura canadense O conto de Aia de Margaret Atwood publicado em 1985, que redundou numa série famosa atualmente. O enredo é interessante e não deixa de trazer algumas reflexões. Trata-se de uma distopia teocrática, cujo governo opressivo emerge vitorioso após uma revolução. É um mundo marcado pelo cerceamento da liberdade individual e dos direitos humanos. A mídia, a cultura e a ciência servem como ferramentas aos donos do poder. Por ora, tenhamos essas obras literárias como conjecturas e reflexões possíveis sobre um futuro não desejado por pessoas empáticas, compreensivas e tolerantes.
*Luciene Carris é historiadora e escritora.