Imprensa 02: Jornalismo não é espetáculo
Textão de Luciene Carris*
Resultado de um processo milenar, a imprensa tal como a conhecemos hoje é a junção de várias ferramentas e veículos de comunicação. É praticamente impossível não ter algum contato com ela, pois penetra em todas as esferas da atividade humana, cumpre uma importante função social. A imprensa se desenvolveu com a criação de diversos jornais e de outros periódicos, seguido pela criação da rádio, da televisão e da internet. No Brasil, a história da imprensa reflete a história da nação.
Nas palavras das historiadoras Ana Luiza Martins e Tânia Regina de Luca “a nação brasileira nasce e cresce com a imprensa”. A sua certidão de batismo é o ano de 1808 quando a família real portuguesa chega ao país. Até aquela data era proibida a publicação de jornais, livros e panfletos. Passados 180 anos, a Constituição Federal de 1988 consagrou em seu texto a liberdade da imprensa. Um dos pilares para a manutenção do nosso regime democrático. Os profissionais dos veículos de comunicação têm um papel primordial na relação entre a sociedade e o Estado. Em muitas ocasiões são até mal-interpretados e repelidos, quando incomodam interesses públicos e particulares.
Em 2020, o mundo foi apanhado pela conjuntura da pandemia do Covid-19. O futuro da humanidade ainda é incerto. Um turbilhão de informações é disponibilizado diariamente pelos veículos de comunicação. As redes sociais tomaram o espaço até então assegurado pelas mídias tradicionais como jornais impressos e a televisão. Em meio a tudo isso, com tantas informações disponíveis somos obrigados a discernir o que é fato ou opinião, o que é verdade ou mentira. Enfim, qualquer um anonimamente pode publicar qualquer coisa nas redes sociais. O cenário atual é bem caótico e contraditório, pois nunca tivemos tanto acesso à informação como atualmente, mas a qualidade é questionável.
Em meio a tudo isso, me veio a mente uma figura importante da história do jornalismo brasileiro, o jornalista Alberto Dines que faleceu em 2018 aos 86 anos de idade. Jornalista, escritor e professor universitário que se destacou pelo tom ácido e crítico ao comportamento dos meios de comunicação. A sua trajetória profissional é bem interessante. Em 1952, o jovem que sonhava ser cineasta começa a trabalhar aos vinte anos de idade no periódico Cena Muda, voltado para os assuntos relacionados ao universo do cinema. Depois colaborou em diversos periódicos, como Visão, Manchete, Fatos e Fotos e jornais impressos como Última Hora, Diário da Noite, Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil.
Um dos fatos marcantes na sua passagem pelas redações dos jornais foi a capacidade de driblar a censura do governo militar brasileiro. Em 1973, um golpe militar depôs o presidente democraticamente eleito no Chile, Salvador Allende, e instala uma ditadura que durou 17 anos naquele país. Em meio ao vendaval político, ele decidiu não publicar uma matéria sobre aquele episódio sem a manchete. Contudo, a atitude audaciosa lhe valeu a demissão cerca de três meses depois do Jornal do Brasil.
Dines também se destacou pela sua crítica ao jornalismo sensacionalista. Originalmente era apelidado de imprensa amarela, tradução literal da expressão norte-americana yellow press, que representa um tipo de jornalismo marcado pela busca por audiência e pela vendagem sem escrúpulo ou compromisso com a autenticidade. O jornalista decidiu apelidar essa imprensa aqui no Brasil de marrom, pois a cor amarela lhe parecia muito amena. A sua crítica contribuiu para o encerramento das atividades do periódico Escândalo, que costumava chantagear e extorquir pessoas com fotos comprometedoras.
Albeto Dines é reconhecido também como um especialista da obra do romancista austríaco de origem judaica Stefan Zweig, que se mudou para a cidade Petrópolis em fuga do regime nazista que avançava na Europa. Em 1988, ele idealizou o programa de televisão semanal Observatório da Imprensa, que era exibido por emissoras públicas. Originalmente era um sítio eletrônico (ou website) que virou programa de TV e depois passou a ser transmitido em rádios, se traduzia num espaço de crítica e debate diverso sobre o jornalismo contemporâneo através do encontro de jornalistas e de outras tantas personalidades.
Sem dúvida o legado de Alberto Dines é inegável. No momento tão delicado que atravessamos, recuperar brevemente a trajetória de uma figura como a dele é essencial para refletirmos sobre o futuro da liberdade de expressão no país e qual é o papel da imprensa. A internet chegou para ficar e modificar o ambiente de trabalho e as nossas relações sociais e de consumo, bem como transformou rapidamente a nossa relação com a informação, sobretudo após a irrestrita e contínua difusão de tantas fake News nos últimos tempos. A título de reflexão, em relação a imprensa de modo geral encerro com uma frase atribuída ao jornalista, que afirmou “(…) a sociedade é maior que o mercado. O leitor não é consumidor, mas cidadão. Jornalismo é serviço público, não espetáculo”.
*Luciene Carris é historiadora e escritora.