Flexibilização 03: Um jeitinho carioca
Textão de Luciene Carris*
No último dia 02 de maio de 2020, o prefeito da cidade anunciou um plano de flexibilização gradual da quarentena. O decreto publicado no Diário Oficial da cidade do Rio Janeiro definiu uma reabertura em seis fases para as atividades econômicas. Por ora, algumas atividades comerciais são permitidas, bem como atividades esportivas nos calçadões das praias e as igrejas. Na esteira dessa normativa, o governo do Estado anunciou a possibilidade da flexibilização gradual para todo o Estado.
Na retomada da rotina, o carioca se deparou com um engarrafamento de 9 km de acordo com as matérias publicadas pelos jornais, ou seja, o retorno a uma situação conhecida por muitos trabalhadores. Não se deve ignorar o registro das tradicionais conduções lotadas mesmo durante a quarentena. Observei que em muitos pontos da cidade a vida seguia a despeito da pandemia.
No último final de semana, pessoas caminhavam, andavam de bicicletas ou corriam ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas, com máscaras ou sem. No aprazível ponto turístico da zona sul carioca, pais e mães brincavam com seus filhos pequenos alheios ao número de mais de 59.000 infectados e mais de 6.000 óbitos decorrentes do Covid-19 no Rio de Janeiro, como se fosse outrora quando inexistia um inimigo invisível a nossa espreita. O cenário nas praias cariocas retratado pelos jornais não diferia muito do que pude observar daquele domingo, quando sai rapidamente para ir à feira perto de casa. Seria a excitação pelo proibido? Muitos conhecidos vêm me relatando situações semelhantes em outros pontos da cidade.
Ainda de acordo com muitos especialistas a conjuntura da pandemia é alarmante, a cada dia o número de óbitos aumenta o que pode acarretar a piora da crise sanitária. A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu alguns critérios para o afrouxamento da quarentena como o controle da transmissão da doença, o pleno funcionamento do sistema de saúde e a adoção de medidas preventivas nas escolas e nos locais de trabalho. Outro fator importante para o relaxamento seria uma “comunidade muito profundamente educada, comprometida, engajada e empoderada”, segundo Michael Ryan, o diretor do programa de emergências daquele organismo internacional. Este último é um ponto interessante digno de reflexão, pois até que ponto o carioca se comprometeu realmente com o isolamento?
O primeiro semestre do ano vai chegando ao fim. Desde março enfrentamos a quarentena e, ao que tudo indica, estamos longe das condições preconizadas pela OMS. Pelo contrário, o número de vítimas cresce e os hospitais encontram-se superlotados. Atravessamos um período delicado de instabilidade política e econômica, de desencontro de informações com a divulgação de muitas fake news e até do negacionismo da pandemia, ao lado da ausência de políticas públicas acertadas entre as esferas governamentais. Soma-se a isso tudo, um sutil discurso se espalha sobre a necessidade imperativa de retomarmos em algum grau as nossas antigas rotinas. Apesar do início da flexibilização, ouvi de alguns conhecidos que demorarão para frequentar lugares fechados como shoppings ou restaurantes, ou ainda, adiarão a retomada de antigos hábitos. Bom, o trabalho é uma necessidade básica para nossa sobrevivência, é inquestionável. Mas uma outra apreensão sensível é o retorno das aulas em escolas e em universidades. Quem se sentirá seguro em deixar seus filhos retomarem essa rotina escolar? As escolas e universidades estarão preparadas? Quem se sentirá seguro para retornar ao trabalho? São indagações válidas.
A flexibilização e o fim do isolamento não trarão um clima de segurança em todos os ambientes, tampouco ocasionarão um equilíbrio ou a retomada da economia como se aguarda. Durante um bom tempo experimentaremos um clima de desconfiança. Possivelmente, a manutenção do uso de máscaras e do álcool gel, uma espécie de “Kit Covid”, será a marca de um novo padrão de comportamento. Seria uma expectativa legítima. Mas é uma realidade desconhecida de muitos que não possuem recursos financeiros para adquirir o tal “kit”, muito menos direito ao saneamento básico em suas residências. Somado a tudo isso encontramos diversas pessoas em lugares lotados, em supermercados ou feiras, utilizando erroneamente as máscaras fora do lugar recomendado e ignorando o distanciamento social em espaços públicos. Será essa mais uma faceta do “jeitinho brasileiro” de lidar com as situações do cotidiano examinadas tão bem por muitos estudiosos como Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Damatta? Ainda não sabemos exatamente como o carioca lidará com a flexibilização do isolamento social, contudo o comportamento tomado por muitos nos últimos meses nos fornece algumas pistas.
*Luciene Carris é historiadora e escritora.