Esgotamento: Um zumbi esgotado

Esgotamento: Um zumbi esgotado

Esgotamento: Um zumbi esgotado

Textão de Luciene Carris

Desde 14 de março de 2020 me encontro em quarentena. Me recordo bem daquele final de semana. Pois, foi o último em que tive o fortuito prazer de aproveitar aquela manhã de sábado de sol em um determinado quiosque no posto 09 na praia de Ipanema. Confesso que não sou àquela carioca que gosta do hábito de ficar estendida por horas na areia sob o sol escaldante. Prefiro mesmo me proteger sob o guarda-sol e muito bem acomodada numa cadeira de praia. Por outro lado, bem que desfrutava de caminhar pelo calçadão ou pela areia até a Pedra do Arpoador, quando parava para contemplar a beleza daquela orla, e, depois de tudo isso me rendia ao biscoito Globo e à água do coco bem gelada ou até mesmo uma cerveja gelada e por que não? Havia um outro barato nessa história toda.

A Pedra do Arpoador é um ponto turístico que atrai as mais diversas pessoas sejam cariocas ou não. Eu costumava ficar por ali alguns instantes para observar e imaginar histórias sobre aqueles indivíduos que por lá passeavam e que se sentiam assim como eu inebriados pela beleza da paisagem. Fazia parte observá-los preparando o breve registro fotográfico através de uma selfie ou no bom português o tal do autorretrato que virou uma febre nos últimos tempos. Não posso esquecer de mencionar ainda dos grupos de garotos que levavam um reprodutor de som portátil e compartilhavam sem a menor cerimônia de seus gostos musicais para todos ali presentes desfrutarem ou não.

Até aquele momento parecia uma história de ficção o estabelecimento do isolamento social, do uso rotineiro de máscaras de proteção e do álcool gel, além da costumaz limpeza das compras que se tornou quase que uma obsessão para muitos. Para o carioca comum, a mudança comportamental daquele jeito informal de cumprimentar tem afetado as relações sociais. Novas formas de sociabilidades têm sido adotadas. Aquele abraço e aquele beijo que se seguiam depois de um breve encontro de olhares e de um sorriso estampado não são mais possíveis. A máscara atrapalha um pouco a compreensão das reações faciais, portanto os sentidos e os sentimentos expressos pelo olhar. Novas formas de sociabilidades se apresentam, então, é possível rejeitar uma mão estendida sem ser rude, assim como evitar os tais abraços e beijos. Assim, sair para ir ao mercado, à padaria, à farmácia ou ao banco, por exemplo, têm sido situações um pouco desgastantes. Sem falar que ir à praia para “pegar um sol” ainda não é oportuno como antes. Então, as minhas lembranças daqueles dias continuam bem presentes na minha memória.

Completaram-se, então, um pouco mais de quatro meses da minha quarentena e com ela surgiu um sentimento de esgotamento do confinamento social e a nostalgia de antigas atividades e de situações tão comuns e rotineiras. A pandemia do Covid-19 não cessou no Brasil, muito menos no mundo. Apesar da decisão dos governantes pelo relaxamento da quarentena e pelo retorno de parte do comércio e de outros segmentos, o inimigo invisível é latente, ele se encontra à espreita. Não por acaso o confinamento gerado pelo coronavírus foi considerado por alguns estudiosos comportamentais como o maior experimento psicológico dos últimos tempos.

Muitos conseguiram se reinventar recriando suas vidas da melhor forma possível dentro dessa realidade. Sabemos que isto é restrito a uma parcela da população que tem acesso a alguma estrutura material e familiar. Porém, há uma outra parcela que não tem por razões socioeconômicas e por serem solitárias mesmo, ou seja, não possuem ligações familiares tão estreitas assim. Olhando por este prisma o isolamento é bem real, o que acabou provocando o aumento do sentimento de solidão, do estresse e da depressão em adultos e crianças. Há quem diga que muitos indivíduos poderão desenvolver outros distúrbios em mundo pós-pandemia oriundo deste ambiente considerado tóxico, especialmente quem trabalha na linha de frente da área da saúde. Por ora, são só conjecturas apreciadas por especialistas em trauma e estresse como a professora de psicologia Elke Van Hoof, cujas pesquisas têm sido amplamente difundidas em alguns periódicos nacionais.

Recentemente conversando ao telefone com um amigo de longa data, eu reclamava da constância dos afazeres domésticos imposta por essa nova rotina repetitiva diária e da necessidade de uma espécie de retiro social. Pois, manter uma rotina de escrita como eu tenho feito diariamente tem sido um pouco complexo, devido a algumas distrações que surgem ao longo do dia. Bom, constato que focar na leitura e na escrita durante a pandemia é algo de excepcional, mas tem sido a minha forma de fuga desta intrincada realidade.

Ao final daquela conversa, depois de um breve silêncio entre nós ele afirmou que havia vida em minha casa. Aquilo tudo que explanei sobre o meu cotidiano era um universo diverso. Apesar da rotina intensa de trabalho constante no homme office, ele me confidenciou que se sentia bem solitário e como um “zumbi” devido à mudança do seu relógio biológico e à insônia constante. Depois dessa colocação, eu repensei alguns pensamentos e até algumas atitudes sobre a minha rotina para se tornar um pouco menos penosa. É bem verdade que quando ele se referiu ao “zumbi”, logo me veio em mente o seriado norte-americano “The Walking Dead”. Talvez eu esteja assistindo muitos seriados ultimamente. Pois, por alguns segundos imaginei o cenário insólito dele andando pelo seu apartamento maltrapilho e desolado destruindo tudo. Acho que essa minha imaginação ainda vai me levar para lugares bem nebulosos ou inventivos.

Luciene Carris é historiadora e escritora.

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