Deixem-me envelhecer

Deixem-me envelhecer

O filósofo e economista inglês Thomas Malthus causou polêmica com a publicação da obra Ensaio sobre o princípio da população em 1798 ao tratar da questão demográfica. De acordo com a sua teoria, a população dobraria a cada 25 anos. Ele defendia que a população crescia em ordem geométrica enquanto a produção de alimentos crescia em ordem aritmética, em um ritmo mais lento. A relação entre a produção de alimentos e a explosão demográfica inspirou a criação de políticas públicas de muitos governantes. O certo é que a realidade em 2020 é diferente.

No caso brasileiro, antes da pandemia do Covid-19, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística conferiu o aumento da expectativa de vida da população mais idosa. Para muitos, isto passou a se caracterizar como um problema socioeconômico, pois se questionava como seria o pagamento de benefícios e das aposentadorias em razão do envelhecimento populacional, daí a articulação pela implementação da polêmica reforma da previdência.

Para alguns, o ano de 2020 pode ser considerado um ano perdido por conta da pandemia de Covid-19 que afligiu o mundo. O inimigo misterioso reforça a fragilidade que já existia no país, bem como acentuou a desigualdade, escancarando para quem quer enxergar o abismo entre ricos e pobres, mas não parou por aí. Uma outra faceta que encontramos disseminada é o preconceito contra os mais idosos, a “velhofobia”, uma expressão veiculada pela antropóloga Mirian Goldenberg que vem pesquisando há anos sobre os mais velhos.

Não raros são as memes, as piadas, as notícias e os vídeos que vemos jocosamente espalhados nas redes sociais estigmatizando os mais velhos, pois eles se incluem no grupo de risco do novo coronavírus. Mas o discurso não se restringiu às redes sociais e aos anônimos, políticos e empresários conhecidos reforçaram o coro do preconceito. Não é novidade tal pensamento de que os indivíduos que chegaram a uma idade avançada são considerados desnecessários, invisíveis ou até inúteis.

O filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe desenvolveu o conceito de “necropolítica”, que pode muito bem ser aplicado por aqui. Para este pensador, a necropolítica pode ser adotada pelo Estado a partir da relação entre a política e a morte, que, em última instância, define quem importa e quem não importa. As notícias sobre as mortes de idosos em asilos europeus e o dilema ético e jurídico dos médicos e profissionais de saúde sobre quem pode viver e morrer nas unidades de terapia intensiva suscitam questionamentos, controvérsias e repulsa.

Mas o leitor pode se perguntar, mas o que eu tenho com isso? E daí? Para você com seus 20, 30, 40 anos, etecetera que esteja lendo este breve texto é bom lembrar que o envelhecimento é um processo natural do ser humano. Não podemos banalizar o mal, bem como naturalizar discursos de ódio. Ao agirmos dessa forma, estaríamos concordando com a manutenção de um status quo excludente, que não deve ver ignorado, pois vidas importam. A morte é algo natural, mas quando inexiste medidas preventivas e assertivas sobre a melhoria da qualidade de vida populacional, independentemente de seu grupo ou classe social, diz muito sobre a aplicação da tal da necropolítica.

A cultura da juventude e do corpo jovem potencializa essa narrativa sobre a desimportância dos mais velhos. A eterna busca pela fonte da juventude está enraizada no Brasil há muitos anos, isto pode ser observado através da publicidade de novos cremes dermatológicos, de tratamentos e de procedimentos cirúrgicos e estéticos. Por outro lado, somos informados pelos veículos da impressa de que muitos avôs e avós sustentam as suas famílias, filhos e netos, todos dependentes daqueles mesmos benefícios falados anteriormente. Mas mesmo assim, ainda são vítimas de agressões físicas ou verbais dentro e fora de suas casas. Sem falar que correspondem aos altos índices de óbitos, de acordo com relatório sobre os impactos do novo coronavírus em pessoas mais idosas publicado recentemente pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Não temos ideia de quando uma vacina surgirá finalmente para nos tirar do abismo em que a pandemia nos colocou, mas podemos tecer conjecturas e manter a esperança. Por enquanto, a precaução é o melhor método preventivo. A longevidade do ser humano incentivou muitos escritores, filósofos e poetas à inúmeras reflexões. Assim, encerro com um excerto de poema da poetisa, filósofa e professora mineira Adélia Prado sobre o ato de envelhecer publicado na obra Poesia Reunida. No final das contas, “é preciso envelhecer para ver o que vai acontecer”.

Todos vamos envelhecer…. Querendo ou não, iremos todos envelhecer. As pernas irão pesar, a coluna doer, o colesterol aumentar. A imagem no espelho irá se alterar gradativamente e perderemos estatura, lábios e cabelos. A boa notícia é que a alma pode permanecer com o humor dos dez, o viço dos vinte e o erotismo dos trinta anos. O segredo não é reformar por fora. É, acima de tudo, renovar a mobília interior: tirar o pó, dar brilho, trocar o estofado, abrir as janelas, arejar o ambiente. Porque o tempo, invariavelmente, irá corroer o exterior… (Erótica é a alma).

Luciene Carris é historiadora e escritora.

Luciene Pereira Carris Cardoso é mestre e doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Realizou estágios pós-doutorais no Laboratório de Geografia Política, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (2013) e no departamento de História da PUC-Rio (2019). É uma das idealizadoras do Canal Entreconexões no Youtube e do Sarau da Casa Azul Podcast.

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