Crônica de um casal confinado
Janice acordou de manhã, bem mais tarde, além do que o habitual. Desde que começou a quarentena, a insônia passou a consumir as suas noites, por esta razão, ela assiste os seus seriados preferidos, um episódio após o outro, sequencialmente. Quando se levantou da cama, o café estava devidamente preparado na cozinha. Na mesa, a xícara, o pão, a manteiga e o queijo aguardavam para um dejejum matinal tardio. Ela é casada com Marcos, eles não possuem filhos, apenas um cachorro buldogue apelidado de Tolstói, que costumam tratar como se fosse um filho humano.
Marcos já se encontrava no escritório improvisado na sala resolvendo os rotineiros problemas do escritório de arquitetura através do homme office, enquanto Tolstói se encontrava esticado no sofá ao seu lado, fazendo-lhe companhia. Janice cumprimentou com um “bom dia” numa voz baixa seca e áspera. Ele estava tão compenetrado que mal percebera a sua presença na porta da sala. Ela deu-lhe as costas, resmungou algumas palavras e se retirou para o quarto. De repente, o telefone tocou. Janice fingiu que não ouvia, esperou tocar algumas vezes, Marcos ignorou. Ela atendeu, era uma amiga do casal, a Fernanda que ligava para trocar algumas confidências sobre o cotidiano e sobre os últimos acontecimentos do atual momento da pandemia.
Para Fernanda, tudo não passava de um grande exagero e os jornais possuíam alguma culpa nisso. Para ela, se tratava simplesmente de uma gripe forte, era um exagero o número de mortes pelo Covid-19 anunciado pelos veículos de comunicação. Janice ouvia impacientemente as palavras de sua amiga sobre a pandemia, sobre o seu casamento e sobre a sua insatisfação constante com Rogério, seu marido, que ignorava qualquer envolvimento nos serviços domésticos e nos cuidados dos dois filhos gêmeos e pequenos, Nina e Caco.
Antes da pandemia, Fernanda levava as crianças para a creche e conseguia fazer as disciplinas da faculdade de Nutrição, além dos afazeres domésticos, enquanto Rogério saia para trabalhar diariamente e retornava somente à noite. Agora Rogério se estabelecia no escritório numa rotina adaptada como se ainda estivesse trabalhando fora de casa. Durante o dia, costuma sair do escritório para almoçar e tomar o cafezinho da tarde. Vivendo dentro do seu universo particular, ele ignora completamente a vida que existe além daquela porta trancada. Para Nina e Caco, Fernanda organizou uma rotina bem organizada com filmes infantis e brincadeiras, além das atividades escolares, que a escola passa remotamente, mas ela vive sempre muito cansada e sem disposição para as aulas online da faculdade.
Janice desligou o telefone, refletiu por alguns instantes sobre a insensatez e a falta de empatia de Fernanda com os outros semelhantes, porém, sentiu alguma compaixão pela sua amiga. Ela optou por não ter filhos. Tolstoi e a sua pequena livraria, para ela, eram seus filhos. Antes da pandemia, costumava levar o seu cachorro para livraria, conversava diariamente com fornecedores e clientes, se sentia completa e viva. O cheiro da livraria era como um estimulante sexual. Quando retornava para casa, depois do trabalho, sempre havia alguma história nova para contar para Marcos, era uma conversa que se estendia por horas, enquanto ambos preparavam o jantar e tomavam uma taça de vinho.
Com o isolamento social, o estresse e a ansiedade tomaram conta de suas vidas, veio o silêncio que ela não suporta. Casados há dez anos, parece que ela não conhece mais o seu marido que a trata com frieza e aparentemente sem o habitual desejo pela sua pele. Até parecem dois velhos amigos. Para ela aquilo não basta, decidiu, então, se refugiar na leitura e nos livros, traçando planos e estratégias para as vendas de seus livros pela internet durante o dia. Marcos costuma cozinhar à noite os seus pratos preferidos e divide os afazeres da casa com ela, procura ainda manter alguma proximidade com Janice, mas se irrita profundamente com a sua insônia e com as horas que perde assistindo filmes via streaming. Para ele, se trata de uma fuga dela da realidade da vida ou até do casamento.
Ele sente um distanciamento que mal compreende, mas ainda aguarda por algum tipo de ação da parte dela para que isto se resolva. Se levantou, um barulho chamou a atenção, abriu a janela, olhou pela varanda e viu algumas pessoas andando de máscara pela rua, conversando em voz alta. Veio uma recordação. Ali na esquina, se encontrava o restaurante em que se conheceram. Desde daquele dia, ele sabia que não conseguiria viver sem Janice, a sua inteligência e a sua ironia eram únicas, além do seu largo sorriso.
Brevemente bateu um sentimento de nostalgia daquele encontro inusitado, acompanhado do deslumbramento e da paixão imediata que aconteceu entre eles. Suspirou, voltou ao computador e para os seus clientes que aguardavam com respostas sobre os planos de uma nova casa em construção. A noite chegou, veio o jantar, Janice retomou o hábito dos últimos quatro meses de assistir seriados, algo impensável antes da pandemia. Ele decidiu ir dormir, sem antes pensar no café da manhã que deixaria preparado para Janice, quando, enfim, ela acordasse.
Luciene Carris é historiadora e escritora.