Criança: Numa folha qualquer…
A pandemia de Covid-19 alterou dramaticamente a rotina dos adultos e das crianças. Os pais foram obrigados a aprender a lidar com essa nova realidade de confinamento social. As escolas estão fechadas temporariamente. Outras atividades diárias que muitos pequenos realizavam como cursos extracurriculares foram suspensos. O cenário é de incerteza e de muitos questionamentos. Muitos pais estão aprendendo a lidar com essa situação.
É bem verdade que a realidade tem lá suas peculiaridades, pois varia em cada ambiente familiar, os contextos são diversos. Tenho observado alguns conhecidos que têm filhos muito pequenos ou pré-adolescentes buscando definir uma rotina de atividades diárias de lazer e de horário de estudos. Talvez seja uma estratégia para manter um aparente estado de regularidade da vida dentro das limitações atuais. Apesar da suspensão das aulas presenciais, as escolas continuam organizando atividades virtuais e enviando tarefas aos alunos.
Os pais que mantiveram seus postos de trabalho continuam remotamente desenvolvendo suas funções, conciliando dia após dia as tarefas pessoais e profissionais. Outros precisam sair para trabalhar, não tem jeito. Não há possibilidade de pedir aquela tradicional ajuda às avós, não é recomendado, elas se encontram no grupo de risco. A escola é o primeiro espaço de socialização e de aprendizagem para as crianças, de aprender com os amigos e com educadores fora do ambiente doméstico. Na semana passada, eu estava numa reunião virtual de trabalho, quando apareceu subitamente o filho de uma das pessoas presentes.
O menino de 8 anos pedia encarecidamente que acabássemos logo com o nosso compromisso, pois estava agendado um encontro virtual com a professora e com os colegas de classe. Havia apenas aquele computador e ele queria mostrar seus desenhos. Dava para observar a preocupação do menino que organizou cuidadosamente na parede da sala a exposição de seus desenhos bem coloridos pintados em papéis de folha A4. A sua empolgação era espantosa que contagiou o ambiente.
E como comemorar o aniversário de uma criança em tempos de pandemia? Uma outra conhecida buscou uma alternativa para comemorar a data de seu único filho também de 8 anos. Ela organizou a festa normalmente com direito à bolo e vela. Os amigos participaram virtualmente do evento através de uma plataforma de conferências. Eu perguntei como ele vivenciou dessa experiência, ela respondeu que ele ficou bem animado, assim como todos os presentes. Aquilo tudo era uma novidade. Depois disso, fiquei pensando como aquela realidade poderia afetar as crianças menores. Aí, me recordei de um casal que tem dois filhos muito pequenos, um menino e uma menina.
O ambiente escolar funcionava como espaço de socialização e de diversão. As tarefas escolares continuam sendo enviadas diariamente, mas para a mãe não fazem muito sentido. Ela argumentou que o barato da escola para crianças assim tão pequenas como as dela era a brincadeira, as atividades lúdicas, assim como o encontro com outros da mesma idade. Constatei que as três mães se desdobram em organizar atividades diversas para os seus pequenos com intuito de manter uma rotina de estudos e de entretenimento em família. Uma das três mães começou a se desafiar na cozinha elaborando iguarias diferentes com a colaboração de seus filhos.
Não podemos ignorar outras realidades encontradas no nosso país. A pandemia do Covid-19 reforçou a desigualdade socioeconômica. A conjuntura desnudou a fragilidade estrutural e ampliou os problemas sociais. As famílias mais pobres são as mais vulneráveis ao contágio. Sem alternativas, não há possibilidade de aderir à quarentena. Nem todos podem trabalhar virtualmente. Há uma superlotação de pessoas nas casas de poucos cômodos. Além disso, as escolas estão fechadas. A maior parte dos alunos não têm acesso à internet, muito menos a um computador para desenvolver as suas atividades escolares. Como pensar no futuro dessas crianças? Como ser criança em tempos de pandemia? Que esperança o mundo pode oferecer?
Alguns especialistas já vêm alertando como o estresse provocado pelo coronavírus pode afetar a saúde e o bem-estar das crianças. Cada criança expressa sua visão de mundo com olhar próprio da inocência infantil e pela fertilidade da sua imaginação. Como garantir a ternura e a harmonia para que isso possa se perpetuar? As dificuldades socioeconômicas vêm se agravando e a imprevisibilidade da pandemia é algo de inédito. Não sabemos como será o mundo após o fim da pandemia, pois muito se especula, cenários são criados, alguns até aterradores. Não há respostas concretas para tantas indagações.
Cabe aos adultos o compromisso de garantir àqueles direitos da Declaração Universal dos Direitos da Criança aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1959. Não deveríamos ter que recordar os princípios aparentemente indiscutíveis como o direito à saúde, à segurança, à alimentação, à escola e à proteção, entre outros. Meninos e meninas merecem viver felizes, apesar do descumprimento do documento internacional ratificado pelas nações. Proteger e valorizar as crianças, pois são o futuro e porque sonham com o mundo. Elas imaginam um mundo como a criança da composição Aquarela de 1983, interpretada pelo cantor, violonista e compositor Toquinho.
Veja e ouça no link:
Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo,
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo…
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva,
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva…
*Luciene Carris é historiadora e escritora.