Corpos dóceis
Textão de Luciene Carris*
De acordo com a estatística oficial, se contabilizou no último dia 09 de julho de 2020 cerca de 69.184 mortes por coronavírus em todo território nacional. No Rio de Janeiro, são 11 mil mortes e cerca de 128 mil casos confirmados de Covid-19 de acordo com os veículos de imprensa. Mesmo com tantos casos alarmantes de pessoas infectadas, a flexibilização do isolamento social foi decretada. Mas uma outra notícia assombra a realidade de muitos brasileiros e de cariocas, como eu e talvez você que esteja lendo esse texto, ou seja, um veto que desobriga o uso de máscaras em espaços públicos, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Em outras palavras, estabelecimentos comerciais, industriais, templos religiosos e instituições de ensino e outros espaços foram desobrigados de usar a proteção individual. Porém, a controvérsia não para aí. Presídios e estabelecimentos de cumprimento de medidas socioeducativas também foram incluídos.
O sistema prisional brasileiro que já era marcado pela superlotação, pela parca infraestrutura e pela insalubridade, melhor dizendo pela propagação de inúmeras doenças, não está isento do contágio do Covid-19, que pode atingir além das pessoas privadas de liberdade, os agentes penitenciários que lidam diariamente com essa realidade. De acordo com alguns estudos, o Brasil é o país que tem a quarta maior população carcerária no mundo em 2018. A percepção internacional sobre o sistema carcerário brasileiro nunca foi positiva. Pelo contrário, sempre foi observada como depósito de pessoas ou até como “campos de concentração para pobres”.
Via de regra a população carcerária é majoritariamente negra, pobre e tem baixa escolarização. “Mas e daí?” Alguns afirmarão que isso não é um problema para o “cidadão de bem”, pois quem está lá mereceu estar por algum motivo e pode até ser, quem sabe, será? Acredito que muitos irão até pensar que a pandemia nos presídios pode ser uma limpeza social e ajudará a nossa frágil economia, que direciona alguns recursos para o sistema carcerário. Outros até dirão em alto e bom tom ou mentalmente para si mesmos que “bandido bom é bandido morto”. É um debate polêmico, que causa animosidade entre muitas pessoas.
Contudo, poderíamos tentar ir um pouco além e entender o porquê da população carcerária ser majoritariamente negra e pobre. Acho que não causa embaraço lembrar alguns episódios da história do nosso país. Um fato relevante é que a abolição da escravatura completou no último dia 13 de maio 132 anos. Em 15 de novembro de 1889 foi proclamada a República, ocorreu uma mudança na nossa forma de governo, mas que de fato pouco alterou a estrutura da sociedade brasileira. Porém, um outro leitor pode indagar qual seria relação da desobrigação das máscaras com estes acontecimentos se já se passou tanto tempo. Será que se passou tanto tempo mesmo? Vou tentar chegar lá.
A História é um ramo do conhecimento muito interessante que ainda fascina muitas pessoas ou pode causar ojeriza em tantas outras que têm lá suas convicções. Entretanto, ler sobre a história do cárcere pode ser um tanto assombroso. Uma história que remonta séculos passados, originalmente funcionava como uma ferramenta de punição e, depois, se transformou em um instrumento de manutenção de uma certa ordem que buscava legitimar o poder do Estado através da disciplina e do controle, como bem examinou o filósofo francês Michel Foucault em uma de suas célebres obras Vigiar e Punir. O modelo coercitivo visava produzir corpos submissos, dóceis ou disciplinados, pretendia ainda reduzir a criminalidade e promover a recuperação dos indivíduos. Mas há algo de paradoxal nisso.
Persistem ainda na sociedade brasileira problemas estruturais de sua formação socioeconômica e cultural, um reflexo de mais de 500 anos da História do Brasil. Não se trata de enaltecer aqui o “coitadismo” ou o “mimimi” como se tem se difundido por aí nas mídias sociais. Subitamente, entramos em contato com informações contraditórias ou Fake News. O fato é que a exclusão social é real e consolidada, assim como o racismo estrutural, que reforça a discriminação e dificulta a ascensão social, privilegiando outros grupos.
Para tanto, basta um breve olhar sobre as nossas constituições anteriores a de 1988, ou ainda verificar como funciona o sistema das leis ou próprio judiciário, para entender um pouco sobre o direito ao exercício da cidadania e ao acesso à escolarização, bem como o direito à outras oportunidades que poderiam mudar a realidade de muitas famílias brasileiras, tornando a nação menos desigual. Por ora, o estereótipo de “cidadão de bem” separa campos opostos, o bom e o mau. Ah! Vale ainda recordar que “cidadão de bem”, recuperado nos últimos tempos, era o nome de um jornal pertencente a uma organização criminosa racista e fascista norte-americana, chamada de Ku Klux Klan. O certo é que no final das contas somos todos cidadãos.
Luciene Carris é historiadora e escritora.