Bares e cafés: Conversa de botequim
Textão de Luciene Carris*
Bares e botequins estão tão associados à paisagem da cidade do Rio de Janeiro, tal como a sua natureza pujante com suas belas praias e com sua vegetação exuberante. São espaços de sociabilidades e de lazer, de jogar conversa ora sobre o cotidiano, sobre o futebol, sobre a política, etc e também para trocar confidências sobre desilusões amorosas e por que não? Nessa parte, cumpre um espaço sagrado de terapia alternativa. A mesa de um bar é um lugar de afeto e desafeto, de comunhão e da teatralização das relações humanas.
Um espaço onde se celebra um grande dia ou se pretende esquecê-lo. Quem nunca ouviu de um amigo confissões na mesa de um bar tomando cerveja ou chope gelado? Ou quem ainda não acordou na manhã seguinte com aquela enxaqueca característica e com arrependimento por ter se estendido em saideiras infinitas? Quem nunca ouviu “amigo por favor a conta e a saideira”?
Seja sentado dentro do estabelecimento ou em pé na calçada de alguma rua da cidade era possível até pouco observar o carioca segurando um copo abastecido com a tal da loira gelada. Convém assinalar que não precisa ser nascido e criado por estas bandas para experimentar esse velho hábito e adquirir os costumes boêmios dos naturais dessa terra. Se não for a cerveja, vai ser o chope ou então um drink da última moda sempre bem acompanhado daqueles tradicionais petiscos oferecidos como ovo de codorna, pastel ou frango à passarinho. Alguns indivíduos são mais sensatos, pois preferem apenas observar e manter uma boa prosa com os amigos.
Mas veio o Covid-19, esse tipo interação social foi temporariamente abolido. Fomos interditados compreensivelmente desse compromisso social em nome da saúde pública. Não podemos ignorar como a pandemia tem afetado sensivelmente o setor que busca meios de sobreviver. Um longo caminho se projeta de recuperação da economia de um modo geral no país e no mundo. Contudo, acredito que as memórias e as lembranças afetivas dos encontros com velhos amigos são ainda presentes para tantos habitantes, que reforçará o retorno gradual dos antigos frequentadores.
Originalmente tais espaços eram considerados sujos, desagradáveis ou mal frequentados pelas classes mais abastadas. Por serem considerados espaços majoritariamente masculinos eram praticamente inacessíveis às mulheres. Botecos, tabernas, quiosques e depois os bares têm uma trajetória conhecida por oferecer comidas e bebidas a preços mais populares. Bom, pelo menos era assim há algum tempo. Pouco a pouco ganhou visibilidade e se tornou um marco da identidade simbólica da cidade.
Por ora, vou recuperar uma história conhecida de um bar tradicional carioca, mas que pode trazer alguma reflexão sobre a falta de compreensão e de como um ambiente inflamado pode causar algumas rupturas. Fundado em 1887, no final do Império, o Bar Luiz não só mudou de endereço por três vezes como mudou de nome. Ficou famoso como Braço de Ferro devido ao nome de um jovem garçom, filho de alemães, Adolph Rumjaneck, que era feroz na queda de braço. Em 1915 passou a se chamar Bar Adolf. Durante a Segunda Mundial, alguns estudantes secundaristas confundiram o seu nome e pensaram se tratar de uma homenagem à Adolph Hitler.
A situação tomou uma proporção épica com direito a quebra-quebra, até que o conhecido compositor Ary Barroso, que se encontrava por lá, conseguiu tranquilizar os ânimos dos revoltados ao explicar a origem do nome. Segundo o livro Memória afetiva do botequim carioca, de Paulo Thiago de Mello e Zé Octávio Sebadelhe, depois do episódio o nome foi mudado para Bar Luiz.
Porém, o bar pode inspirar também situações criativas. Em 1935, Noel Rosa, Vadico e Gogliano Oswaldo compuseram o samba “Conversa de Botequim”. A letra revela uma conversa entre o garçom sempre solicito e um freguês bem atrevido. É considerada uma das composições mais gravadas de Noel Rosa. Mas podemos lê-la como uma crônica de época, quando se constata aquela conhecida malandragem de um sujeito que utilizava da conversa fiada para alcançar o seu objetivo final.
Aquele ambiente poeticamente interpretado por Noel Rosa era um ponto tradicional de encontro de compositores quase que um “escritório”, onde se trocava informações e realizavam negócios como a compra e venda de sambas. Retomando ao campo das memórias afetivas, revelo que para mim a lembrança dessa música vem do simpático jingle comercial “Telefone ao menos uma vez para 2-3-4-4-3-3-3”, então promovido na televisão para o serviço de classificados por telefone que reproduzo integralmente aqui.
Conversa Fiada
Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro
Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Telefone ao menos uma vez
Para dois-três-quatro-quatro-três-três-três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente
Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
*Luciene Carris é historiadora e escritora.