A dama da noite
Textão de Luciene Carris
Um dos pontos que eu costumava frequentar na cidade era o Centro do Rio de Janeiro, mas a pandemia de Covid-19 interditou esse lazer. Bateu-me aquela nostalgia de lugares por onde eu podia sempre encontrar os amigos ali perto dos Arcos da Lapa. A Lapa que ficou conhecida no imaginário do carioca pela sua vida noturna boêmia e dissoluta como afirmou Brasil Gerson, redutos de cabarés baratos, de poetas, de prostitutas e de malandros, seus assíduos frequentadores, foi cantada pela cantora Alcione na música Eu vou pra Lapa, de onde retirei o título para o texto.Uma das figuras que bem representa essa fase da história da Lapa da primeira metade do século XX foi Madame Satã, homossexual assumido, artista e reconhecido capoeirista. Entretanto, o local tem uma origem considerada “nobre e pura” em torno de um seminário criado em louvor à Nossa Senhora da Lapa e a capela do Divino Espírito Santo. O Centro conserva uma história importante que se mistura com a própria história do Brasil, que se iniciou com a fundação em 1565 da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Da ocupação inicial no Morro Cara de Cão, no atual bairro da Urca, se transferiu para o Morro do Castelo, daí a cidade se expandiu. Não raro é ouvir nos dias atuais a expressão “ir à cidade”. Um ritual que demandava um modo de se comportar e de se vestir para desfilar nessa espécie de vitrine ao ar livre da cidade espetáculo. Pois lá, se concentrou durante longo tempo o centro financeiro, administrativo e comercial do país.
Além das livrarias, dos jornais, dos cafés e das lojas da rua do Ouvidor, que outrora representou a rua mais importante e elegante da cidade como bem assinalou o escritor Machado de Assis na crônica “O livreiro da Rua do Ouvidor”. Desbancada pela avenida Rio Branco, a rua do Ouvidor nos últimos tempos continuou como reduto do grande comércio. Contudo, até recentemente funcionavam os botequins e a tradicional roda de chorinho e de samba que lá ocorria aos sábados nas proximidades da encantadora Livraria Folha Seca, especializada em obras sobre a história do Rio de Janeiro, futebol e música.
É bem verdade que nos últimos anos a crise já atingia a região. Notícias veiculadas pela imprensa sobre o fechamento de lojas da rua da Carioca e de bares tradicionais, entre outros estabelecimentos, não eram incomuns. O remodelamento e a tentativa de uma ousada revitalização de áreas degradadas por ocasião da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Projetos que envolveram investimentos bilionários, mas não conseguiram frear a degradação e o abandono no qual o Centro se encontra atualmente. O legado de 2016 rende ainda uma boa polêmica por conta, também, da evidenciada compra de votos para a cidade sediar o evento, um verdadeiro escândalo que envolveu reconhecidas figuras da política brasileira.
Como afirmou Gilmar Mascarenhas, saudoso amigo e geógrafo conhecido, falecido em 2019 em um trágico acidente de bicicleta, a cidade adotou um “modelo fora de moda”. Gilmar, que era um crítico dos megaeventos esportivos como a copa do mundo de futebol e os jogos olímpicos, constatara que tais projetos envolviam a segregação e a elitização de determinadas áreas urbanas da cidade. Muito embora o argumento oficial defendesse a geração de empregos e a melhoria da infraestrutura urbana.
Na atual conjuntura, o vírus misterioso não só alterou nossos hábitos como interferiu no uso e nas funções da cidade. Com as recomendações sanitárias adotadas, muitos edifícios de escritórios fecharam as suas portas e o que se vê atualmente é a profusão do homme office por um longo período, sendo assim, parece que veio para ficar transformando as relações de trabalho capitalistas. Para alguns estudiosos, a expectativa é que o Centro se reinvente após a pandemia. Reinventar ou recriar uma solução para um problema antigo com uma nova abordagem, será isto mesmo possível?
Atualmente, cerca de 40% dos prédios da região se encontram vazios e a tendência não parece muito otimista. Assim, uma nova configuração se ensaia com edifícios de ocupação mista, residencial e comercial, que atraia novos habitantes. Um outro quadro que se entrevê é a ampliação das ciclovias em detrimento de transportes públicos com intuito de aliviar a mobilidade urbana. A magrela era aquele tipo de veículo que o mesmo Gilmar Mascarenhas defendia, bem como utilizava diariamente para circular entre a sua casa e o seu trabalho no Rio de Janeiro.
Mas o que será das cidades em mundo pós-pandemia? Como será a relação do carioca com a cidade nesse “novo normal” que tanto se fala correntemente? Se retoma o discurso de bairros autossuficientes e a concentração de serviços neles. Neste novo desenho urbano, os indivíduos não teriam a necessidade de realizar grandes deslocamentos, evitando, portanto, a aglomeração de pessoas. Por ora, são especulações e conjecturas de um dilema da conjuntura da pandemia. Porém, pode ser uma oportunidade real para se pensar numa mudança ou até para se fortalecer o modelo tradicional já consagrado.
Luciene Carris é historiadora e escritora.