50 mil – 02: O mal banal
Textão de Luciene Carris*
Passaram-se pouco mais de três meses desde o primeiro caso oficial de um óbito registrado decorrente de Covid-19. Neste último sábado, os jornais contabilizaram a triste cifra de mais de 50 mil mortes de acordo com os dados oficiais. Ao todo, no território brasileiro são 1.085.038 casos confirmados. No Rio de Janeiro, foi contabilizado 87.317 pessoas contaminadas, 8.412 falecidos pela doença infecciosa. A negligência das esferas de poder se associa com a banalização das mortes e a ignorância sobre o potencial de seu contágio pela maior da população brasileira. De muitos conhecidos já ouvi por aí que nos últimos tempos ninguém mais morre de câncer, de infarto, de dengue ou de qualquer outra moléstia.
Infelizmente, as pessoas continuam morrendo de doenças variadas, isso é uma verdade. Mas a questão fundamental que deve ser reafirmada em relação ao Covid-19 é o desconhecimento sobre a cura do vírus. Até o presente momento não há um medicamento ou uma substância plenamente eficaz. O coronavírus ainda é um mistério para a comunidade científica. São muitos as fake news espalhadas sobre possíveis tratamentos ou curas sem comprovação científica. É necessário o compartilhamento de informações verdadeiras com intuito de evitar a transmissão e o contágio.
A informação correta é um direito de qualquer cidadão e é altamente eficaz na atual crise sanitária, o que pode ser a diferença crucial entre a vida e a morte. Contudo, no meio de tudo isso o uso de informações divergentes e contraditórias se tornou uma arma político-ideológica de manipulação. A pandemia no Brasil avança a despeito da solidariedade e da prevenção. Ao que parece, apesar da exposição constante de histórias de casos comprovados nas diversas mídias prevalece uma sensação de indiferença em relação a dor alheia. A apatia ou a insensibilidade do brasileiro são observados, quando são disseminadas notícias sobre as constantes aglomerações nos últimos dias como nas praias ou nos shoppings recém-abertos.
Em meio a pior crise sanitária dos últimos tempos, somos assombrados pela banalidade do mal em 2020. O comportamento do brasileiro me remeteu em certa medida às observações da filósofa Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann em 1961 em Israel. Ele era um ex-oficial da Alemanha Nazista. Um dos principais responsáveis pela deportação de centenas de milhares de judeus para os campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Mas qual seria a relação entre este oficial nazista e o comportamento de muitos brasileiros na atual conjuntura pandêmica? Seria um exagero da minha parte esta comparação? Vejamos.
Os traços da personalidade ao longo do seu julgamento do antigo funcionário do governo de Adolf Hitler surpreenderam a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, uma das pensadoras mais influentes do século XX. Ela observou que ele era um indivíduo calmo, um funcionário padrão e um exemplar pai de família. Com ar de naturalidade, de frieza e até serenidade ele argumentou que estava simplesmente cumprindo o seu dever. Ele se considerava o típico cidadão de bem de sua antiga nação. Mas o que estava em jogo eram os limites éticos e morais do seu comportamento. Sem algum tipo de juízo de valor sobre a sua conduta sobre aqueles atos nefastos que levaram a morte de seres humanos, ele acreditava que estava desempenhando um papel importante na engrenagem política daquela sociedade nazista.
O fato é que quando desconsideramos a dor e o luto de mais de 50 mil brasileiros estaríamos bem próximos do conceito de banalidade do mal cunhado pela filósofa. Não irei me estender nesse breve texto sobre o tal conceito que é alvo de inúmeros estudos bem aprofundados. Mas posso assinalar que, quando o brasileiro não enxerga a sua responsabilidade nos simples atos de seguir à risca as recomendações em defesa do isolamento e do distanciamento social. Neste caso, se estaria praticando o mal banal. Pois, a ausência de reflexão crítica ou de julgamento pode provocar essa privação de responsabilidade pelos seus atos. Tal atitude podemos observar em diversas situações noticiadas pelos jornais. São comportamentos e falas que se estendem desde pessoas comuns, como eu e você, ou até de notórios representantes das esferas do poder brasileiro.
O certo é que fomos excluídos de uma aparente “normalidade” daquele antigo cotidiano até poucos meses atrás. Mas a banalidade já estava aí presente no Brasil e no mundo através da violência indiscriminada diária e da nossa indiferença em relação a dor de nossos semelhantes. Mas afinal o que nos une enquanto brasileiros? O que nos define como povo e nação? São conceitos bem complexos. Porém, podemos de uma maneira mais ampla afirmar que formamos uma comunidade historicamente construída por indivíduos agregados no mesmo espaço territorial, que compartilham da mesma língua, identidade, história, religião ou cultura, etecetera. Essa descrição parece fria e vazia, quando retomo o pensamento sobre as 50 mil mortes oficiais de compatriotas.
Mais do que isso é necessária uma reflexão sobre essa congregação de indivíduos assentados nessa base territorial. Precisamos sair dos nossos microuniversos e repensar o nosso futuro em comum nesse espaço geográfico que compartilhamos. Portanto, defendo que esse destino seja pautado em valores como afeto, ternura, compaixão, empatia, solidariedade e respeito em relação à vida para poder continuarmos aqui a nossa existência. Por ora, são reflexões de uma historiadora insone e apreensiva sobre o porvir.
Luciene Carris é historiadora e escritora.