
O texto a seguir foi originalmente publicado no site do projeto “Lugares de memória: o bairro da Gávea e seu entorno” do PET História da PUC-Rio.
Quando decidi escrever uma narrativa sobre a história do bairro do Jardim Botânico, em especial da região do Horto, me vieram muitas lembranças da minha infância. Não pretendo apresentar aqui uma breve descrição autobiográfica ou algo meramente descritivo, mas apresentar um relato dessa experiência da relação entre a historiadora e o seu objeto de pesquisa, a sua dimensão subjetiva “de explicitar, como historiador, o elo entre história que se fez e a história que vos fez”, como apontado na obra Ensaios de Ego-história do historiador francês Piere Nora (1987), que se tornou uma inspiração para esse breve texto.
Nomes de ruas, estátuas, monumentos, são lugares de memória, registros que acabam se perdendo na cotidianidade das vidas, devido ao corre-corre diário. Pouco se percebe como um lugar pode afetar a nossa identidade. Um olhar mais atento ao redor, assim como flanar pelas ruas dos nossos bairros da nossa cidade, pode ser um exercício interessante para o entendimento da relação de identidade e de pertencimento do indivíduo com o espaço.
Uma das questões iniciais era como escrever a história do lugar onde moro desde 1981, quando tinha apenas quatro anos de idade, uma vez que muitos sentimentos se misturavam com o meu objeto de estudo. Cresci nesse universo em que todos se conheciam e, por sua vez, era também possível encontrar figuras conhecidas como artistas e jornalistas da famosa rede de televisão que se instalou por lá na década de 1960, contribuindo para garantir ao lugar ares de um “bairro de artistas”.
O certo é que o interesse em estudar as fábricas e o ambiente operário da região, ou ainda, de recuperar as memórias de antigos moradores ocorreu ainda no ensino fundamental. Naquela época, eu estudava na escola pública Camilo Castelo Branco na rua Pacheco Leão, que ainda existe. Geralmente caminhava da minha casa até a escola, meus amigos da época também moravam ali perto. Certa vez, fui à casa de uma amiga para realizar um trabalho escolar. Nessa altura, me chamou a atenção os detalhes da construção da sua casa. Uma casa de dois andares com pisos de madeira, com o pé direito muito alto e uma fachada muito antiga. Comecei a observar que as outras casas ao lado, assim como as portas e as janelas mantinham traçados arquitetônicos semelhantes, além disso, aparentemente todos se conheciam, pois eram muito cordiais uns com os outros. Algum tempo depois ela confessou que a sua família se instalou há muitos anos e que existiu uma fábrica ali perto, assim, a sua casa integrava a vila operária da antiga fábrica de tecidos.
Passaram-se alguns anos, mil estórias se cruzaram. Cresci, casei, virei mãe e aí descobri, conversando com a avó do meu filho Gabriel, Dona Vanda, que a sua família era de origem italiana. Comentou também que os seus avós, Torquato Carrii e Maria Vitelozzi, vieram de uma cidadezinha do interior da Itália para o Brasil para trabalhar em uma fazenda de café, mas que fugiram de lá, pois a comida servida para eles era muito ruim. Então, vieram para o Rio de Janeiro, se instalaram na Favela da Praia do Pinto, que foi removida de uma maneira brutal da Lagoa Rodrigo de Freitas, não importando os protestos, inclusive do bispo Dom Helder Câmara.
De lá, foram morar na região do Horto. Na época havia a possibilidade de trabalhar no Jardim Botânico ou em alguma fábrica da região, e, assim, aconteceu. O seu pai Basílio ingressou como aprendiz aos onze anos de idade no Jardim Botânico, depois ingressou no Serviço do Horto Florestal. A sua mãe, Maria, também teve uma breve passagem na Companhia de Tecidos Carioca, assim como outros membros de sua família. No Horto, se estabeleceram, fincaram suas raízes, era possível trabalhar, morar e plantar hortaliças, bem como criar pequenos animais para a sobrevivência de sua família. Décadas depois, os antigos trabalhadores tanto da fábrica como do Jardim Botânico passaram por algumas situações delicadas e até injustas.
Durante anos, a fábrica, apesar de vender o grande terreno para a construção de casas, local onde se encontravam os prédios antigos e novos com seus maquinários, se transformaria em um condomínio fechado na década de 1990. Os antigos donos buscaram tomar para si legalmente a vila operária dos antigos trabalhadores. Mas em 1987, um decreto municipal tombou o seu conjunto arquitetônico, dando conta provisoriamente dessa problemática. Por sua vez, os antigos trabalhadores do Jardim Botânico e os seus descendentes passaram a ser considerados como “invasores”.
Essa dinâmica é interessante, pois dialoga com as transformações ocorridas na cidade, com o seu crescimento, a valorização económica de determinados espaços que envolve a expulsão de moradores tradicionais, enfim, um processo de gentrificação, que não é exclusivo ao Rio de Janeiro, e pode ser observado em muitos países, incluindo os do hemisfério norte. Foi exatamente nesse momento que me vi inserida em uma história complexa, que mexe com as identidades das pessoas. Ali, se constata a relação dos indivíduos com o espaço que, por sua vez, se relaciona com o sentimento de pertencimento e com as memórias de família que perpassam gerações pela oralidade e por outros registros como a fotografia.
Então, foi numa dessas conversas de família que perguntei se a Dona Vanda conhecera o músico e compositor Haroldo Lobo, uma figura conhecida do carnaval carioca, que trabalhou na Carioca. Para minha surpresa, ela o conheceu de perto, pois participou do Bloco da Bicharada, que foi idealizado por ele. Frequentava o bloco, ainda menina, assiduamente com seu pai e irmãs durante o carnaval, junto com os outros amigos de seu pai Basílio. Contou que a italianada do Horto estava sempre presente em todos os carnavais, não só nesse bloco, mas em tantos outros, a chamada “Pequena Itália”, pouco conhecida da memória da cidade. De tal modo, como Haroldo Lobo, a pequena comunidade de italianos se perdeu entre as memórias e as lembranças, pairou o esquecimento e a seletividade de algumas narrativas sobre o bairro como de origem real, aristocrático ou de artistas, portanto, observo que cabe a nós historiadores trazer à baila tais histórias eclipsadas, que também contribuem para a história do Rio de Janeiro.
Fontes:
Arquivo Público Mineiro, Matrícula dos imigrantes na Hospedaria de Imigrantes de Juiz de Fora. Livro n. 06, 19/09/1897 a 29/09/1898 (SA 925, p. 047) Disponível em http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/imigrantesdocs/photo.php?lid=170 Acesso em: 18 mar. 2020.
Brasil, Nomeação de Basílio Carris ao cargo de jardineiro de 3a. Classe assinado pelo presidente dos Estados Unidos do Brasil Washington Luíz Pereira de Sousa em 17 de junho de 1930. Arquivo Pessoal da família Carris.
Depoimento de Vanda Carris em 20 de janeiro de 2021.
Haroldo Lobo nasceu para o carnaval. Entrevistado: Carlos Monte. Entrevistadores: Luciene Carris; Luzimar Soares. [S.i.]: Sarau da Casa Azul, 25 fev. 2021. Podcast. Disponível em https://anchor.fm/sarau-casa-azul/episodes/Episdio-36-Haroldo-Lobo-nasceu-para-o carnaval—Carlos-Monte-er2i03 Acesso em: 30 mar. 2021.
“Morreu Haroldo Lobo, o compositor do carnaval”. Jornal do Brasil, 21/07/1965, p. 21, ed. 168. Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/030015_08/71446 Acesso em: 18 de out. 2020.
Referências bibliográficas:
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BIZZO, Maria Nilda (org). Cacos de memórias: experiências e desejos na (re)construção do lugar: o Horto Florestal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2005.
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SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018.
Crédito da Imagem: Bairro do Operariado no Jardim Botânico: Ponte de Tábuas, 1958. Acervo digital da Biblioteca do IBGE, fotógrafo Tomas Somlo, ID 17114. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=417114 Acesso em: 30 mar. 2021.