Quando um historiador se torna um biógrafo
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Não é necessário ressalvar o aumento do interesse pelas biografias pelo público leitor e pelas livrarias nas últimas décadas, é um sucesso editorial inegável. Aliás, quem nunca se divertiu observando os títulos da seção de biografias de uma livraria? O público leitor em geral tem um ávido interesse pela vida privada, pelos detalhes mais curiosos ou até mesmo escândalos que envolvem determinados personagens. Porém, é bom recordar que durante um bom tempo as biografias foram ignoradas pelos historiadores. As biografias históricas dos grandes heróis nacionais tão popularizadas durante o século XIX e nas primeiras décadas do século XX, produzidas pelos historiadores ligados ao romantismo e ao positivismo, foram consideradas ultrapassadas pelos integrantes da Escola dos Annales em 1929. Como ressaltou o historiador Francisco Falcon, “como gênero ligado ao ‘tempo curto’, no nível dos acontecimentos, a biografia parecia insignificante e desnecessária às grandes sínteses estruturais – e objetivas” (Falcon, 2000, p. 11).
Na França, o gênero foi recuperado na academia a partir das décadas de 1960 e 1970, mas podemos ainda assinalar a clássica obra O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, de Fernand Braudel, publicada em 1949, apontada por Philippe Levillain como estudo biográfico. Tempos depois, na década de 1980, se proliferaram os dicionários de verbetes, por exemplo, ultrapassando as fronteiras da França. A renovação historiográfica se consolidou com o “retorno da História Política”, quando se inseriu o biografado no campo da política, afinal das contas “as ideias políticas surgem dos indivíduos”. De acordo com Levillain, “praticamente não há uma editora francesa que não tenha uma coleção de biografias, semelhante às galerias de retratos ou de bustos dos castelos da época do Renascimento” (Levillain, 1988, p. 143).
Muitos estudiosos têm refletido sobre o trabalho do historiador como biógrafo, sobre a importância das escalas de análise do biografado, isto foi apontado por Giovanni Levi, ou sobre a superficialidade ou a subjetividade das narrativas bem ressaltado por Pierre Bourdieu, entre outros aspectos de ordem teórico-metodológica. O certo é que se observa um boom de biografias e de autobiografias produzidas por diversos historiadores de ofício e cientistas sociais, uma seara antes relegada ao universo dos jornalistas e literatos que conquistaram um grande público. Os estudos biográficos constituem um campo fértil para os profissionais da história, alguns deles até utilizam a técnica da história oral para revelar as histórias de vida daqueles sujeitos até então ignorados ou silenciados, os “excluídos da história” lembrando aqui a historiadora Michelle Perrot.
No Brasil, a produção historiográfica é crescente, há de se destacar o pioneirismo de alguns empreendimentos como o volumoso Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, iniciado em 1974, sob a coordenação de Israel Beloch e Alzira Alves Abreu. Atualmente os verbetes se encontram no acervo online do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Outra iniciativa original é a coleção “Os que fazem a história”, coordenado pelo professor e historiador Francisco Falcón, e iniciada pela editora FGV no ano de 2000. Assim, pautada nos métodos da disciplina histórica e comprometida com a historiografia contemporânea, o estudo de cada biografado da coletânea não se encontra isolado da sociedade, da época, da cultura e do ambiente intelectual, ou seja, do “exame das circunstâncias”, cuja inspiração é Ortega Y Gasset, como expressa o seu coordenador na apresentação. Neste sentido, destaco três obras elaboradas pelo historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues que integram a coleção: João do Rio: a cidade e poeta. O olhar do flâneur na Belle Epoque Tropical (2000), José de Alencar: o poeta armado do século XIX (2001) e Nair de Teffé: vidas cruzadas (2002).
O que poderia comentar sobre a primeira obra publicada em 2000? Uma agradável leitura, provocativa e audaciosa, pois Edmilson escolheu um caminho curioso que mistura acontecimentos reais e ficcionais. Para tanto, utiliza dois narradores para apresentar a “biografia” de João do Rio com trechos das obras do próprio autor ou de seus contemporâneos, “juntando pedaços de obras e intercalando-os de imagens e olhares” situando o poeta e a cidade do livro. Para o leitor menos precavido, o historiador adverte no prefácio a sua escolha narrativa “como produto híbrido que procura realizar uma conexão entre história, literatura e vida”. Desse modo, não se trata de um perfil psicológico, um esboço biográfico ou uma história temporal de vida, mas uma narrativa que combina ficção e história, e por que não? A ficção, neste caso, “não é sinônimo de mentira, engodo, ou irrealidade, mas de produção de sentido”. João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, conhecido como Paulo Barreto ou João do Rio, viveu quase 40 anos. Com apenas 29 anos de idade se tornou imortal da Academia Brasileira de Letras em 1910. Foi homenageado com um nome de rua no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. O imortal João do Rio foi um escritor considerado “maldito”, foi um flâneur que perambulava com inteligência pela cidade e que falava sobre coisas que ninguém conhecia ou tinha ouvido falar sobre a cidade, os seus habitantes e o mundo. Há cem anos, 100 mil pessoas compareceram ao seu enterro. Em 2021, tímidas foram as homenagens e poucos os eventos realizados na cidade por ocasião do centenário do seu falecimento. As suas crônicas ainda inspiram muitos estudiosos, que se dedicam a compreender a complexidade do espaço da cidade. Não por acaso segundo o historiador,
a grande contribuição de João do Rio foi a de mostrar que se pode transformar tudo o que está à nossa volta em objeto de literatura, de jornalismo e de história, sobretudo as coisas que estão no escuro, no campo sombrio da noite e nos espaços socialmente proibidos, coisas pequenas, óbvias e comuns, diria Charles Baudelaire (Rodrigues, 2000, p. 23).
Sem perder o fôlego, no ano seguinte, foi publicada uma nova “biografia”, desta vez sobre o cearense José de Alencar, um “poeta armado” de ideias e de letras, e “grande descobridor do Brasil”. Para o autor, “Alencar não foi simplesmente o fundador da literatura de cunho nacional”. Mais do que isso, Antonio Edmilson apontou como ele utilizou da literatura, do teatro e da política como instrumento para pensar um projeto de nação e realizar um “diagnóstico”. Nesse sentido, ele optou por um caminho diferente dos estudos anteriores já realizados, uma alternativa que revela que Alencar “é político porque é escritor e é escritor porque é político”, uma vez que “as impressões iniciais de quem estuda Alencar é de que seus críticos e comentadores só fazem repetir essas marcas do século XIX, ou seja, o escritor ficou aprisionado no seu tempo e respondeu às interrogações sempre repetindo as verdades comuns do Império”.
Por sua vez, em 2002, Edmilson foi ao encontro das “vidas cruzadas” de Nair de Teffé, que costuma ser biografada, ora como uma “pobre coitada”, ora como uma “revolucionária”. Assim, procurou estabelecer um fio condutor que evidenciasse os dois modos de avaliá-la, de compreender a complexidade de sua trajetória, que se encerrou de maneira discreta em 1981. Será que realmente foi uma “pobre coitada” obrigada a se casar com o presidente Hermes da Fonseca, apelidado pelos mais íntimos de “Dudu”, um homem bem mais velho e viúvo? Aliás, um casamento que foi alvo de inúmeras críticas por parte de seus opositores. Um desses episódios trazidos pelo nosso “historiador-biógrafo” foi a noite do “Corta-Jaca”, quando a composição de Chiquinha Gonzaga foi executada por Catulo da Paixão Cearense no Palácio do Catete, ou seja, um ritmo popular tocado no violão nos salões da elite do país. A moral conservadora adjetivou como pornográfica e escandalosa, sendo inclusive registrada nos anais do Senado da República por Rui Barbosa. Mas Nair virou Rian, a caricaturista de destaque de periódicos como Revista da Semana. Um dom que surgiu ainda criança, uma arte tolerada e controlada pelo seu pai, Antônio Luiz Von Hoonholtz, o Barão de Tefé, considerado um herói da Guerra do Paraguai. Como bem destacou Edmilson, a vida de Nair/Rian daria um belo filme, pois ela é um símbolo de várias épocas.
Acredito que valeria a pena reeditar a coleção “Os que fazem a história” que, atualmente, encontramos apenas nos sebos. Confesso que sou uma leitora assídua de biografias, integro aquele grupo de leitores que gosta dos pormenores e das curiosidades, que podem nos inspirar a refletir sobre as nossas vidas e sobre o nosso cotidiano. Retomando Levillain, “a biografia é o lugar por excelência da pintura da condição humana em sua diversidade”, e pode servir de representação da história coletiva através de um personagem, revelando conexões entre o passado e o presente, o indivíduo e a sociedade.
Dedico esse texto ao professor e amigo Antonio Edmilson Martins Rodrigues.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Referências:
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
FALCON, Francisco. Apresentação. In: RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. João do Rio: A cidade e o poeta. O olhar do flâneur na Belle Époque Tropical. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. João do Rio: A cidade e o poeta. O olhar do flâneur na Belle Époque Tropical. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
________. José de Alencar: poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
________. Nair de Teffé: vidas cruzadas. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
*O texto foi originalmente publicado no blog: