Guerra-Peixe e o cenário nacionalismo musical

Guerra-Peixe e o cenário nacionalismo musical
Rio de Janeiro, 15 de junho de 2021.
No dia 01 de junho de 2021, inauguramos o  Box Digital de Humanidades, um projeto em parceria com os historiadores Luzimar Soares e André Sena, a cada quinzena convidamos um estudiosos para escrever livremente sobre um assunto de seu interesse. Depois dessa pequena nota explicativa, republico aqui o meu texto publicado e convido todos a conhecer o blog.
Natural da cidade Petrópolis, César Guerra-Peixe nasceu em 18 de março de 1914. Filho de Francisco e Anna-Adelaide Guerra-Peixe, portugueses, que se mudaram para o Brasil em 1893. Seu pai, ferrador de cavalos, já cultivava o interesse pela música, executava diversos instrumentos musicais (violão, bandolim, guitarra portuguesa, sanfona de oito baixos e cítara), o que certamente influenciou o interesse do jovem César pela música, ao ponto de aprender com tenra idade, a tocar violão, bandolim, violino e piano, este último aos nove anos de idade. Ainda criança viajou por cidades dos estados do RJ e MG se apresentando em conjuntos musicais. Em 1925, iniciou seus estudos musicais na Escola de Música Santa Cecília em Petrópolis, cinco anos depois tornou-se professor catedrático da mesma instituição.
Na ocasião, teve a oportunidade de estudar com importantes professores, tais como Henrique Harry (solfejo), Adelaide Carneiro (violino), Elfrida Strattman (piano), Gáo Omacht (violino) e Lionel Maul (violino). Logo em seguida, passa a viajar frequentemente ao Rio para ter aulas particulares de violino com a professora Paulina d’Ambrosio, então professora na Escola de Música por 42 anos de vários musicistas importantes, considerada a violinista predileta de Villa-Lobos. Na sua terra natal, Petrópolis, tocou piano no cinema mudo. Teve uma trajetória excepcional como arranjador, regente, violinista, pesquisador e professor de várias instituições com passagens pela UFRJ, UFMG, USP, no Centro de Estudos Musicais do Rio de Janeiro, na Pró-Arte e na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Além disso foi violinista na Orquestra Sinfónica da Rádio MEC e também lecionou no Seminário de Música da Pró-Arte, se destacou ainda como arranjador de discos e idealizou a Escola de Música Popular do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Ao longo de sua vida, recebeu inúmeros prêmios como Prêmio Shell e o Prêmio Nacional de Música do Ministério da Cultura, este em 1993, antes de falecer. Mas o nosso recorte escolhido aqui é um curto período de sua trajetória com destaque para a sua formação ao encontro com o grupo Música Viva.
Em 1932, Guerra-Peixe ingressou em primeiro lugar no antigo Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, atual Escola de Música da UFRJ. Dois anos depois, decidiu se fixar no Rio, quando passou trabalhar em restaurantes, gafieiras, cassinos, companhias de revista, bailes e igrejas. O seu primeiro emprego foi na Taberna da Glória como integrante de um trio musical alemão (violoncelo, violino e piano). A sua capacidade de executar qualquer música sem a leitura das partituras foi decisória para a ampliação de trabalho profissional nesses segmentos. Em 1934, graduou-se na Escola de Música. Já no ano seguinte, foi admitido como violinista no Café Belas-Artes, o que lhe permitiu uma certa tranquilidade para retomar os estudos no Conjunto de Câmera da UFRJ e as aulas particulares com a professora Paulina. Em 1938, teve seus primeiros arranjos registrados na gravadora Odeon, já sob a influência da obra modernista Ensaio sobre a música brasileira (1928) do escritor, etnomusicólogo, poeta e crítico literário Mário de Andrade (1893-1945), o que podemos refletir como um ponto importante em sua trajetória profissional.
Vale a pena registrar que Mário de Andrade, – assim como os demais modernistas -, enaltecia a cultura popular e defendia o estudo do folclore como fonte temática e técnica dos compositores eruditos com intuito de criar uma música eminentemente nacionalista e brasileira, o que implicava no rompimento com os representantes das elites intelectuais da Belle Époque (1871-1914), tais como Rui Barbosa, Coelho Neto e Olavo Bilac. Em linhas gerais, a visão destes intelectuais era considerada ultrapassada. Segundo os críticos modernistas, os romances ao diferenciar a condição social do homem do campo com homem urbano, dotava este último o símbolo da civilização, convergindo ideologicamente com o estereótipo pejorativo do personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato, amplamente difundido, por exemplo.
Contudo, desde o início do século XX jovens músicos eruditos brasileiros causavam controvérsias ao introduzir elementos das culturas populares em suas composições, a este exemplo podemos citar Chiquinha Gonzaga, Villa-Lobos e Ernesto Nazaré, em especial as influências musicais de origem africana registradas em suas composições. Villa-Lobos, por exemplo, que participou da Semana de Arte Moderna de 1922, causou certa polêmica ao se apresentar de fraque e de chinelos, envolvendo-se na atmosfera modernista da época. Segundo o estudioso Ernandes Gomes Ferreira,
(…) O compositor busca, desde o início de sua carreira, o retrato de um Brasil composto por diferentes raças. Para tanto, funde a sugestão de Debussy, a força de acordes que não seguem a estrutura harmônica tradicional, com melodias de cantigas populares e folclóricas. Ele buscava a valorização do país utilizando elementos da cultura popular, não como elemento exótico, mas como parte da composição. Pelo título das peças, percebe-se essa preocupação: Danças africanas (1914), Amazônia (1917), Lenda do caboclo (1920), a série de Choros (1924-1926) entre outras (Ferreira, 2011, p. 214).
Além disso, a essa atmosfera do período, envolveu-se um jovem compositor e professor de francês de passagem pelo Rio de Janeiro, Darius Milhaud, que entre 1917 e 1918, trouxe para as suas apresentações nos saraus e reuniões os tangos e maxixes de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. Tais ritmos ainda eram ignorados pelas elites cariocas, apesar dos saraus organizados pela primeira-dama Nair Teffé, esposa do Marechal de Ferro, Hermes da Fonseca, no Palácio do Catete, como o popular Corta-Jaca (1895) de Chiquinha Gonzaga e de Machado Careca. A composição fora executada pelo violão, em 1914, pela própria Nair de Teffé e pelo seu convidado especial, o compositor e poeta, Cattulo da Paixão Cearense. O evento organizado para a despedida do então presidente de seu governo, lá presentes encontravam-se o corpo diplomático, diversos políticos e a elite carioca. Este episódio gerou um grande escândalo retratado pela imprensa da época. A despeito da controvérsia, anos mais tarde, o ambiente musical modernista de 1922 foi marcado pela participação de “antigos e modernos”, pois:
(…) Compositores que eram considerados velhos, com sessenta anos, como Henrique Oswald e Francisco Braga; e músicos com aproximadamente trinta anos, como Villa-Lobos e Luciano Gallet; homenageados como Glauco Velazques, que foi professor de Gallet. E nomes ligados a outras gerações que darão prosseguimento às renovações do início do século XX: Ernani Braga, Fructuoso Vianna, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli e Luis Cosme. Muitos desses compositores estarão em contato direto com poetas modernistas, fazendo inclusive música baseada em seus poemas, como é o caso de Guarnieri para a obra de Bandeira (Ferreira, 2011, p. 217).
Os intelectuais da Semana de 1922, entre os quais, Mário de Andrade, Graça Aranha e Renato Almeida, defendiam composições brasileiras dentro de uma estética nacional. É válido ainda registrar que desde o início do século um grupo defendia a autonomia musical, enquanto outro se identificava com o uso ideológico da arte pelo Estado Novo e pela indústria cultural (esta atrelada ao governo), muitos desses intelectuais eram ideólogos do governo Varguista, participando da máquina do Estado, a exemplo do próprio Mário de Andrade. O autor de Macunaíma envolveu-se, entre as décadas de 1920 e 1940, nas arenas literária/cultural/artística e a política, passando a atuar nos serviços de educação e cultura de São Paulo, depois no governo federal. Segundo Arnaldo Contier, os intelectuais compartilhavam da mesma visão: (…) a) brasilidade; b) identidade nacional e intelectual; c) o folclore como símbolo da ‘fala do povo’ a ser pesquisado e aproveitado pelo compositor erudito em suas obras; d) a modernidade musical fundamentada nas concepções de arte pura, polifonia, polirrítimica, polimodalidade e novas pesquisas timbrísticas (Contier, 2017).
De acordo com esse pensamento, os compositores brasileiros entre os séculos XVI e XIX foram obrigados a adotar a estética estrangeira, pois prevalecia a ausência de uma tradição popular e nacional capaz de fornecer uma diretriz “autóctone”, pois não havia uma concepção definida de povo brasileiro no território nacional. A música, nesse sentido, seria o reflexo das “falas populares”, a síntese de todas as etnias (negros, brancos, amarelos, portugueses, italianos, espanhóis). As falas populares foram silenciadas ou sufocadas pela elite intelectual do Império e nos primeiros anos do regime republicano. Um exemplo disso é a obra O Guarani de José de Alencar, adaptada por Carlos Gomes. Há uma identificação clara com a estética musical italiana, sobretudo as modulações do sistema tonal e as árias, negando as músicas dos indígenas brasileiros. Buscava-se um “som nacional, puro e livre”. De acordo com Mário de Andrade, “ser moderno e nacional” significava, durante as décadas de 20, 30 e inícios dos anos 40, romper musicalmente com a “subserviência da Europa”. Até então, Heitor Villa-Lobos foi considerado um dos primeiros a romper com essa estética, em algumas de suas obras emergia uma “independência cultural” em relação à Europa.
Uma nova fase se inaugurava em 1944, quando Guerra-Peixe passa a ter aulas particulares com o maestro alemão Hans J. Koellreutte (1915-2007), que se estabeleceu no país, depois de fugir da Alemanha Nazista em 1937. Na ocasião, enveredou pelos estudos do dodecafonismo da chamada Escola de Viena (grupo de músicos pelo qual ficou conhecido por se aglutinarem em torno Arnold Schoenberg). Com o maestro alemão, Guerra-Peixe prosseguiu seus estudos de Análise, História e Estética da Música, Problemas de música para microfone, Harmonia acústica e Técnica dos doze sons. Vale a pena lembrar que o maestro alemão foi professor de dois outros grandes maestros brasileiros: Tom Jobim e Moacir Santos.
Introduzido por Koellreutte no Brasil, o dodecafonismo foi criado pelo compositor austríaco Arnold Franz Walter Schoenberg (1874-1951), na década de 1920, como uma alternativa ao sistema tonal predominante desde a Idade Média. A fase dodecafônica do maestro Guerra-Peixe se consagra entre 1944 e 1949. Nesse período, ele passou a dedicar com mais afinco à orquestração de música popular e envolve-se no movimento Música Viva, criado pelo então maestro Koellreutte, em 1938, que reuniu ao seu redor os jovens compositores Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe, Eunice Katunda e Edino Krieger, entre outros músicos. A expressão “Música Viva” foi cunhada por Hermann Scherchen, renomado regente alemão, que tinha como uma de suas preocupações a divulgação e compreensão da música contemporânea.
O grupo foi criado na época do Estado Novo (1937-1945). É digno de nota que esse período da História do Brasil foi caracterizado por profundas mudanças políticas e institucionais na condução política do país, marcadas pela centralização do poder e pela necessidade de um rigoroso nacionalismo, que absorveu as artes, em especial a música, como instrumento de propagação de seus fundamentos ideológicos e de valores morais. Desse modo, (…) o nacionalismo ocupa-se em identificar uma coletividade histórica em termos de Nação, e são os fatores étnico, geográficos e culturais que asseguram a solidariedade nacional (Oliveira, 1982, p. 26). Caberia ao Estado a manutenção da ordem moral, da consciência de coletividade e como instaurador do progresso e do desenvolvimento no país, tendo como três eixos o conservadorismo, o autoritarismo e o elitismo, a esse último gravitara intelectuais e artistas. Essa geração estava disposta a assumir o papel central no processo político, assumindo o papel de uma “boa elite”, pois acreditavam na desigualdade entre os homens e a uma minoria cabia o privilégio do poder com intuito de “salvar a sociedade brasileira” de seu atraso atávico, cuja trama associava tradição e modernização.
Segundo Carlos Kater, pretendia-se cultivar a música de valor para uma evolução da expressão musical atual e de todas as tendências; proteger e apoiar em especial as tendências dificilmente acessíveis; reviver obras de valor da literatura musical, para uma evolução ampla e popular sob aspectos modernos e atuais; promover uma educação musical sob pontos de vista modernos e atuais; apoiar todo o movimento que se destina a desenvolver a cultura musical e promover um trabalho coletivo entre os jovens músicos do Brasil.
A terceira fase da Música Viva (1946-1952) inaugura-se com o Manifesto de 1946 ou a Declaração de Princípios, assinado porEgydio de Castro e Silva, Gení Marcondes, Heitor Alimonda, Santino Parpinelli, Eunice Katunda, Guerra-Peixe, Cláudio Santoro e Koellreutter, afirmando-se a posição de grupo de vanguarda, excluindo o “falso nacionalismo” e defendendo a linguagem universal da música capaz de unir os diversos povos, refletia-se, portanto, o período logo após a II Guerra Mundial e as consequências do nazi-fascismo, bem como o estabelecimento da Guerra Fria entre os Estados Unidos e URSS. No Brasil, com a redemocratização logo após o fim da Era Vargas, a nova orientação política pendia para os EUA. Mas, ao contrário do que se propaga o grupo Música Viva não sei tornou um movimento de anti-vanguarda nacionalista. Pelo contrário, pois apontava um novo nacionalismo musical, pautado na pesquisa do folclore nacional associado às novas técnicas de composição.
Para finalizar, encerro enfatizando a contribuição singular de César Guerra-Peixe à história da música brasileira. O ensaio trata-se originalmente de um excerto de uma pesquisa anterior realizada para um documentário sobre a sua trajetória, porém, na época me dediquei também a compreender um pouco sobre o contexto e sobre a história da música, infelizmente o projeto não foi adiante. Assim, retomo o texto, que se encontrava engavetado por alguns anos, e o publico aqui como uma forma de protesto contra a lamentável situação em que se encontra a cultura no nosso país. Pois, “um país sem cultura é um país sem educação”, retomando a frase da renomada atriz Fernanda Montenegro.
Referências:
CONTIER, Arnaldo. Mário de Andrade e a música brasileira. Revista Música, São Paulo, n. 47, maio 1994. Disponível em http://www.revistas.usp.br/revistamusica/article/viewFile/55070/58712 Acesso em: 21 jun. 2017.
ABBATE, Carolyn; PARKER, Roger. Uma história da ópera: os últimos quatrocentos anos. SP: Companhia das Letras, 2015.
FERREIRA, Ernandes Gomes. Literatura, música erudita e popular no modernismo brasileiro. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011. Acesso em: 20 jun. 2017. Disponível em http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/Forum/anaisvii/210.pdf
KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter: Movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Ed.: Atravez, 2001, 217.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi de; Velloso, Mônica Pimenta e GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. RJ: Zahar, 1982.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira et all. Enciclopédia de Guerras e Revoluções: v. 1, 1901-1919, a época dos imperialismos e da Grande Guerra (1914-1919). RJ: Elsevier, 2015.

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