Doce balanço a caminho do mar *

Doce balanço a caminho do mar *
É bem verdade que os registros das práticas do banho de mar remontam até a Antiguidade Clássica. Hipócrates, por exemplo, já recomendava os benefícios das propriedades curativas naturais da água do mar para a saúde. Na obra O território do vazio, o historiador francês Alain Corbin apontou que ao longo do tempo houve uma espécie de relação de amor e de ódio entre os indivíduos e o mar nas mais diversas civilizações. Medo de pestes, de piratas, dos saqueadores de naufrágios, de monstros marinhos, da possibilidade da perda de entes queridos. Além disso, as praias eram consideradas insalubres para os europeus, um verdadeiro depósito de detritos.
O oceano seria a própria encarnação de Leviatã, o monstro bíblico descrito por Dante Alighieri na sua famosa obra A Divina Comédia. Tempos depois, as pinturas que retratavam o mar e as praias, ao lado de textos de escritores românticos, contribuíram para restauração da praia como um lugar de cura e de paz. Assim, os frios banhos de mar passaram a ser recomendados pelos médicos, e o desejo de frequentar a praia cada vez mais apreciado. Na segunda metade do século XIX, o banho de mar terapêutico ganhava popularidade.
Em 1870, o médico português Fernando de Magalhães inaugurava uma casa de repouso recomendando, para fugir das epidemias constantes, “os ares e as águas” de Copacabana. Um antigo areal, distante e vazio, passou a receber investimentos públicos e se transformou num novo território. A criação de uma linha de bondes pela Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico e a abertura de um túnel entre Copacabana e Botafogo favoreceram o surgimento de um novo bairro e de uma “nova forma de experimentar a vida urbana carioca”, surgia Copacabana a “princesinha do mar”.
De uma área pouco valorizada e praticamente inabitada até o final dos Oitocentos, surgia o loteamento das quarenta quadras que compunham a Villa Ipanema em 1894. Passaram-se algumas décadas para aquele ideal de praia terapêutica se transformasse na praia como vitrine, local de exposição de corpos, de tendências e de transgressão dos comportamentos, como hoje bem conhecemos. A partir da década de 1960, o bairro de Ipanema se transformava rapidamente ganhando contornos vanguardistas e cosmopolitas, tornando-se um dos lugares mais caros da cidade do Rio de Janeiro. Esse imaginário cosmopolita foi uma construção de muitos cronistas, a exemplo de Jaguar do jornal O Pasquim, bem como da imprensa geral que disseminava práticas culturais que ali ocorriam, de um estilo de vida que desafiava uma visão de um mundo tradicional.
A vanguarda cultural surgia na praia de Ipanema, em especial na área que compreende o Arpoador e o Píer, onde se formaram as “Dunas da Gal” por ocasião da retirada das areias para construção do emissário submarino, frequentados por surfistas, artistas e jovens envolvidos no movimento de contracultura, como Leila Diniz e Gal Costa. As práticas e os hábitos culturais inovadores acabaram por construir uma identidade do habitante ou frequentador ipanemense, um “jeito carioca de ser”. Isto projetava a praia e o bairro para dentro e para fora do país como um bem de consumo, decorrente do legado do estilo musical da Bossa Nova e pelas tendências criadas e recriadas na sua orla como o uso do biquíni, cujo imaginário continua associado a musa, Helô Pinheiro, a eterna garota de Ipanema dos versos de Tom Jobim e Vinícius de Morais.
O medo nas areias cariocas se traduz atualmente pela possibilidade do contágio ainda pelo coronavírus e pelos furtos que podem ou não acontecer etc. Mas será a praia realmente democrática como se costuma afirmar? De acordo com a antropóloga Fernanda Pacheco Huguenin, a praia é um espaço de conflito. Ao longo de sua pesquisa, ela observou que nas areias de Ipanema diversas “tribos” se dividem em territórios baseados nas afinidades estéticas ou comportamentais, sem ignorar as delimitações sociais e as fronteiras simbólicas existentes; portanto, “a praia de Ipanema e seus points como regiões morais das cidades”. Se por um lado, a territorialidade reproduz essa ambiguidade, por outro, determinados laços afetivos e de solidariedade tornam a praia um símbolo dos ideais de democracia, de liberdade e de igualdade.
Quase na esquina rua Joana Angélica, o Posto 9 se transformou no refúgio daqueles frequentadores que perderam antigos espaços na década de 1970, como o Castelinho, a antiga casa do cônsul sueco Johan Edward Jansson. Considerada uma das primeiras casas da praia estabelecida em 1904. Décadas depois se instalou no lugar o Bar Castelinho, ficava no trecho nas proximidades da rua Joquim Nabuco, então apelidado de “praia do Castelinho”.
O certo é que para muitos o Posto 9 passou a ser considerado como o território de todas as tribos. Então, lá observamos o cotidiano dos ambulantes, dos esportistas, dos turistas, dos barraqueiros e dos quiosqueiros, e de tantos outros que possuem a sua disposição um trecho de areia para contemplar a paisagem natural e se aventurar nas suas águas geralmente frias. A orla se traduz em um espaço de lazer, de transgressão e de trabalho para muitos que têm na atividade informal o seu ganha pão diário. Como bem destacou o escritor e poeta Ricardo de Carvalho Duarte, conhecido como Chacal, o Posto 9 é um pedaço de mau caminho:
Posto Nove está para a praia assim como a praia está para a cidade. A praia é o lazer da cidade. O Nove é a onda da praia. A praia é o corpo na cidade. O Nove é a nudez do corpo. A praia é a primavera da cidade. No Nove, o verão se espraia. A praia aquece a cidade. O Nove queima, incendeia. A cidade bebe. O Nove se embriaga. Vocifera e vai embora.
Referências:
 CORBIN, Alain. Território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HUGUENIN, Fernanda Pacheco. Omito da praia democrática: um ensaio sobre Ipanema, sua bossa e seus banhistas. Campos: Essentia Editora, 2019.
O’DONNEL, Julia. A invenção de Copacabana. Culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
QUEIROZ, Andréa Cristina de Barros. A construção da “República” de Ipanema no Rio de Janeiro nos anos de 1960. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 24, maio-ago, 2020.
SOARES, Luzimar Bernardo. Nas ondas do mar carioca: o moderno e as tradições vistos a partir da história dos pescadores da Colônia Z-13 na praia de Copacabana. São Paulo: E-manuscrito, 2020.
 
 

*O texto foi originalmente publicado no blog

   Box Digital de Humanidades (BDH)

Reflexões e provocações a cada quinzena

 
 

0 Comentários

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*