Carta escrita por conta de saudades à turma do 28.*
Rio de Janeiro, 04 de abril de 2022.
Gente do 28,
Saudade não tem idade! Olha eu voltando ao 28, depois do seu fechamento em 2015.
Na madrugada de ontem, domingo, tive um sonho, daqueles que só podiam acontecer, depois de alguma coisa especial. Sonhei com o antigo 28. Tive então vontade de falar com vocês, lembrando as minhas sensações e porque não angústias da saudade e recordando nossas sextas-feiras.
No sonho cheguei, como sempre, muito cedo ao restaurante. O dia de verão enchia de luz a Praça dos Estivadores. Saltei do ônibus na Praça e caminhei em direção à rua Barão de São Felix, passando antes no Itaú da esquina para tirar dinheiro. Daí segui para o 28. Não havia ninguém no restaurante, apenas os da casa. Mas o aconchego me fez feliz. Quantas vezes fiz esse caminho e tive essa sensação, pensando no dia que viveria. Jacinto, de saudosa memória, arrumando as mesas. Seu Amandio temperando o cabrito e as suas ajudantes organizando as comidas.
Numa mesa, no fundo, Claudia ensina a lição a sua filha pequena. Sentando na nossa mesa, pedi uma água e, como sempre, olhei para o painel com nossas fotos. O olhar, de súbito, fez surgir uma vontade imensa de estar com todos, de observar cada um entrando com seus jeitos especiais. Sim, porque estrategicamente sentava sempre de frente para a entrada. Uns olhando para o fundo, vendo quem já estava, outros devagar iam chegando, cumprimentando seu Amandio e o Jacinto e a neta do garçom mais interessante que conheci, pois além de garçom era fotografo, músico.
Volto ao real, com Jacinto me mostrando as fotos que havia tirado durante a semana, destacando as figuras importantes que comeram no 28, ou lembrando de alguém da turma que, desgarrado, tinha estado lá com amigos e amigas ou ainda apresentando a sua nova câmera, além do relatório dos acontecimentos da semana, destacando, por vezes, o que comeram e beberam. Prazer de quem, atento a tudo e a todos, gosta de fazer uma resenha antes de o movimento começar.
O vinho veio a seguir e a minha espera se torna ansiedade. Quem virá? Quem chegará primeiro? As perguntas derivam do comentário de seu Amandio: “Quantos virão?”, preocupado com os cabritos que podem acabar, e é preciso reservar. Minhas respostas são sempre dúbias, mas possuem uma marca: “Não sei, talvez hoje venham poucos”. E vocês chegam, junto com os primeiros clientes, muitos fregueses antigos que nos cumprimentam.
Chegam outras turmas tão diferentes que não consigo identificar. Para Rogério, filho de Dona Augusta, eu seria o culpado de tanta gente desconhecida pela propaganda que fazia do 28. Do nosso lado, já estavam presentes os da Uerj. Primeiro, o Alcides, depois o Rogério com Dona Augusta e, por vezes, rebocando os irmãos e conhecidos, depois a Angélica, que se destaca pelo seu modo de entrar. Outros da Uerj vão pingando. Chegam os da UFF, capitaneados pelo Bira. Depois os amigos do Angu do Gomes que fomos encontrando pela vida. Por fim, os da UFRJ, do Batucadas Brasileiras e de vários acasos e encontros.
O 28 encheu. O tumulto é grande. Jacinto se vira para dar conta de todos, quando o Isaias, o popular Quem-quem, ainda estava no restaurante, ficava um pouco mais fácil. Claudia se esfalfa nas bebidas. Aportam os novos. São conhecidos de alguém de nossa turma. Arquitetos, sambistas, fotógrafos, diplomatas cumprimentam e se apresentam. Lembro de um dia muito especial. Foi quando Dona Augusta completou 100 anos e a festa tomou conta do lugar. Todos que estavam no 28 participaram com direito a bolo e aplausos gerais. Saudades desse dia. A conversa se estica acompanhada de um cabrito que o costume transformou em aperitivo, depois a diversidade.
Os cheiros tomam conta do salão. E chega o arroz de polvo, disputado a tapa numa enorme panela com toda a simplicidade da casa. Outros comem o feijão com costela e outros ainda o filé ou o frango e ainda as iscas de fígado com elas ou sem elas, tudo ainda acompanhando as azeitonas portuguesas e o pão e a manteiga servida naquela forma de vidro redonda e pequena. Azeite aos borbotões e o vinagre da casa, feito com o vinho que sobrava nas garrafas deixadas nas mesas, estavam sempre presentes, acrescente-se a pimenta que devia ter a idade do restaurante, 105 anos. A comida incentiva a conversa que aumenta o barulho e acalenta os corações.
O banquete começa a chegar ao fim. O 28 esvazia, mas nós permanecemos. E vêm as sobremesas. Os Romeus e Julietas e os Anitas e Garibaldis ou o pudim de leite. A tarde vai acabando. Jacinto começa a fechar as portas. Vem a hora boa. Nós e os proprietários irmãos conversando, na penumbra do restaurante, coisas íntimas, segredos da vida. Está anoitecendo e é hora de levantar acampamento do 28. Saímos e o movimento é grande no entorno da rua Barão de São Felix, caminhamos em direção à rua Camerino, iniciando o nosso flanar noturno. Alguém não conhece os Filhos de Gandhi? Atravessamos a rua para visitar a ruína do Afoxé e por tabela comentar o descaso com o Jardim do Valongo, também conhecido como Jardim da Imperatriz, obra da reforma Pereira Passos.
A caminhada segue em direção a rua Sacadura Cabral, passando pelo Trapiche da Gamboa, pela Igreja do Bispo Macedo, pelas boates para dar uma parada numa casa linda que sempre nos atraia e onde descansamos, olhando a pedreira do Morro da Conceição e os cofres antigos que se abertos dariam acesso a riqueza de alguém de 1858.
O Gracioso é o próximo a nos receber, cerveja e bolinho de camarão. Pouso relaxante de onde ouvimos os sons do samba da Pedra do Sal. Andamos mais um pouco pela rua São Francisco da Prainha e chegamos ao Largo da Prainha onde o novo pouso é o antigo Angu do Gomes. O encontro abre espaço para mais amigos e a madrugada é o limite com os Escravos da Mauá. A conversa começa a tomar o rumo do dia seguinte e as ideias pintam em cascata: Feira do Lavradio, Gohan, Praça São Salvador. Acordei quando alguém ia dar uma nova ideia. Perdi a melhor parte. Talvez seja a oportunidade de sonhar novamente com o dia de sexta-feira.
De posse da realidade, penso como tudo isso findou. Lembro que tudo acabou numa sexta-feira, dia 30 de junho de 2015, numa das poucas que não fui ao 28. A notícia me pegou de surpresa. Mariana me ligou, eu estava em Itaipava, e me revelou o desastre. Tentamos buscar outro lugar. Rodamos o Rio de Janeiro. Com isso, a turma do 28 foi tomando um rumo diferente. Os interesses foram mudando. Dona Augusta nos deixou e o Carlinhos também. Jane foi para Portugal. Outros procuraram outras turmas. Por vezes, nos reuníamos no dia 20 de janeiro, dia do padroeiro da cidade na rua do Ouvidor, para alegria do Rodrigo, proprietário da grande Livraria Folha Seca.
Durante um tempo nos amontoamos no Zé Maria próximo ao antigo 28, o Solar do Tamega. Era bom porque tínhamos notícia do seu Amandio e a comida correta, uma das cozinheiras do 28 estava trabalhando no restaurante do lado e nos dava notícia, mas a pandemia fez com que a continuidade da turma do 28 se desfizesse. Os que sobraram andam pela cidade juntos atrás de um pouso digno da qualidade do 28.
É isso. Minhas saudades desaparecem em momentos nos quais o Face recorda as nossas lembranças e reúne as fotos da turma no 28. Não matei as saudades, mas falei com vocês. Guardo lembranças gostosas e alegres, espero que vocês também. Despeço-me com carinho.
Edmilson, o professor (Apelido dado pelo seu Armando)
*Reproduzo a saudosa crônica publicada pelo professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues (UERJ/PUC-Rio), no seu Facebook, em homenagem ao restaurante instalado na Rua Barão de São Felix, 28, próximo ao Cais do Valongo, que foi reduto de músicos, jornalistas e artistas. Um lugar especial que tive oportunidade de frequentar. Crédito da imagem: Rogério Dias. Para saber mais, confira aqui no Rio Memórias.