A era da inocência ou a prisão dos bons costumes

A era da inocência ou a prisão dos bons costumes

Sempre gostei de literatura, especialmente de contos, crônicas e de ficção científica, além dos clássicos brasileiros. Quando veio a pandemia em março de 2020 e o recolhimento em nossas casas, busquei formas de me relacionar com o mundo de outra maneira, uma vez que ficamos impedidos de encontrar velhos conhecidos. Alguns deles não mais os encontrei desde então, infelizmente. A literatura pode ser uma forma de relacionamento com o mundo, de entendê-lo e de expressá-lo, uma forma de arte extremamente prazerosa. Filmes, livros, a música e a escrita têm sido algumas das minhas estratégias para manter algum grau de sanidade em meio a esse tempo sombrio. Confesso que nunca cogitei vivenciar uma situação tão complexa e aparentemente distante de uma resolução coerente e acertada.

Bom vamos falar sobre coisas boas! Recentemente revi o filme “A época da inocência”, lançado em 1993, que ganhou vários prêmios na época. A película é dirigida pelo lendário cineasta norte-americano Martin Scorcese. Não preciso recordar aqui sobre a sua brilhante filmografia marcada por filmes como Táxi Driver (1976) e Os Infiltrados (2006). Acho também desnecessário entrar em detalhes sobre os atores Winona Rider, Michelle Pfeiffer e Daniel Day-Lewis, que representam com maestria o triângulo amoroso daquela Nova Iorque de 1870. Aquela sociedade aristocrática nova-iorquina, apegada ao Velho Mundo, presa a determinados comportamentos éticos e morais, pouco lembra a Nova Iorque contemporânea, o oposto da exagerada série “Sex and the city”.

Talvez um bom filme seja como um bom vinho vai ficando melhor com o tempo como se diz por aí. O certo é que aprendemos a prestar atenção em detalhes que passaram incógnitos em outra ocasião.  O filme em questão é uma adaptação da obra homônima da escritora norte-americana Edith Wharton. Então, fui ler o livro, que é realmente fantástico, o filme faz jus ao texto. Achei, no final das contas, lá no meu íntimo, a obra muito mais interessante. Como estratégia narrativa ao filme, Scorcese recorreu à utilização do voice-over, a inserção de uma narradora feminina, talvez de maneira demasiada. Uma tentativa de dar uma impressão literária ao filme, de ser mais fidedigno a obra penso eu.

O advogado bem-sucedido Newland Archer estava prestes a se casar com a jovem May Welland de uma família aristocrática, quando conhece a prima de sua noiva, a condessa Ellen Olenska, recém-chegada da Europa e separada do seu marido abusivo. Ao tentar ajudá-la no processo, ele se vê apaixonado pela condessa que possui comportamentos inusitados, totalmente diferentes de sua jovem noiva. Ela se vestia e se penteava de forma diferente, se relacionava publicamente com outros homens, pouco se importando com as convenções sociais. Ela usava cores vibrantes passando pelo azul vivo, vermelho e o preto, o que bem representa a sua jornada pelo direito à liberdade e a abdicação dela, a desistência, algo próximo a resiliência. Por outro lado, a sua bela noiva sempre aparecia com vestidos claros com detalhes em tule, o que dava um ar constante de aparente inocência. Não possuía voz ou personalidade própria, sempre passiva e pronta para agradar.

São poucos os que se interessam em descobrir a história por trás do filme, sobre o responsável pelo roteiro ou se é uma adaptação do livro, etc. Me peguei refletindo sobre exatamente isso nos últimos dias. Quem essa é autora que escreveu esse livro? Qual a sua história e o porquê de ter se dedicado à escrita? O filme tem um quê de autobiográfico quando descobrimos quem foi Edith Warthon (1867-1937). Ela descendia de uma das famílias mais ilustres de Nova Iorque e entendia perfeitamente como funcionava as rígidas regras dos códigos de bom-tom e do bom-gosto. Compreendia os limites do desejo e do controle social, as expectativas daquela sociedade e como determinados comportamentos poderiam acabar em escândalos e com a reputação de uma família, especialmente de uma mulher. Me remete a uma prisão cercada pelas aparências e pelas falsidades. Como diz a narradora em voice-over “dava menos trabalho seguir as tradições”.

Edith Warthon possui uma biografia inspiradora, que certamente está ali de certa forma representada em seu livro. Pertencia à bem-sucedida família Jones de Nova Iorque. A sua vida estava praticamente toda planejada. Um casamento bem-sucedido fazia parte dessa expectativa familiar, que acabou sendo concretizado com a união com um banqueiro de uma família aristocrática, daí a herança do sobrenome. Teve uma educação privilegiada, falava fluentemente francês, italiano e alemão, mas segundo seus biógrafos não frequentou escolas, não era considerado admissível para uma boa moça de família.

Mas ao contrário do que narrou em seu livro, ela se divorciou, e, depois de separada se mudou para a França. Lá, se envolveu na Primeira Grande Guerra ajudando refugiados e órfãos de guerra. Aliás, a obra foi escrita durante o período da guerra. Ao longo de sua trajetória peculiar, escreveu uma série de poemas, de contos e, pasmem, quarenta romances. Não por acaso se destacou como a primeira mulher a receber o prêmio Pulitzer de Literatura, em 1921, pelo livro A época da Inocência. Uma outra curiosidade era o seu interesse pelo paisagismo e pelo design de interiores, algo que não foi ignorado na descrição de muitos cenários e aparece como profissão de alguns de seus personagens.

No momento em que observamos o aumento considerável de escritoras, de romancistas e de poetisas, vale a pena conhecer a sua obra e a sua trajetória. O livro pode ser lido como o leitor quiser. A leitura é algo tão íntimo e pessoal. Respeitemos às escolhas de cada um. Penso eu que pode ser lido como uma crônica de costumes de época ou como uma crítica social e incitar inúmeras reflexões sobre os papéis sociais esperados. A dualidade entre viver um amor idealizado ou sucumbir às expectativas da sociedade e o preço que se paga pelas escolhas tomadas. Um mundo de aparências que revela o conflito entre a sociedade e o indíviduo. Bens materiais, a manutenção de um determinado padrão e estilo de vida, uma reputação ilibada em detrimento da vontade individual e o sacrifício da felicidade. A regra parece bem clara. A obra completou cem anos e acho que não perdeu a sua atualidade.

4 Comentários

  1. Luzimar 4 anos atrás

    Muito obrigada por sua delicadeza em escrever esses textos. Me encantei pelo filme e obviamente pelo livro, buscando os dois. O texto, cheio de leveza deixa-nos com curiosidade e vontade e desconhecer as obras.
    Parabéns pela sensibilidade.

  2. ANDREA CASA NOVA MAIA 4 anos atrás

    Boa resenha, Luciene! Você escreve cada dia melhor! Continue nos enchendo de belos textos sobre temas da nossa existência humana no mundo. Obrigada!

    • Autor
      Luciene Carris 4 anos atrás

      Oi querida! obrigada! Tem sido realmente um aprendizado escrever sobre outros temas. Bj.

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