O delivery pandêmico
Textão de Luciene Carris*
No último dia 01 de julho de 2020, os motoboys e os entregadores de aplicativo fizeram um grande protesto no Rio de Janeiro. Um grupo se reuniu nas proximidades da Igreja da Candelária e depois seguiu para o Ministério do Trabalho na Avenida Antônio Carlos no Centro. Um outro protesto foi realizado em outros bairros como o Jardim Botânico e Botafogo, assim como uma carreata ocorreu no bairro da Barra da Tijuca. O certo é que a greve se estendeu a outros estados da federação e até a outros países da América do Sul. Entre as reivindicações solicitadas por essa classe de trabalhadores se encontram: o aumento da tarifa das entregas, a criação de banheiros disponíveis e bases de alimentação. De uma maneira geral, basicamente eles solicitam melhores condições de trabalho. Qual a razão dessa manifestação se relacionar com a pandemia de Covid-19 que assola não apenas o Rio de Janeiro, mas com o Brasil e o mundo?
Não é nenhuma novidade tais demandas. Trabalhadores sempre lutaram e lutarão por melhores condições de trabalho e por salários melhores, a esse respeito poderia citar o estudo de alguns historiadores célebres como o britânico Edward Thompson, estudioso da formação da classe trabalhadora inglesa ou ainda, para quem gosta de literatura, romances como Os miseráveis de Victor Hugo ou Germinal de Emile Zola, ambos publicados no século XIX. Este último, por exemplo, decidiu conviver com os trabalhadores das minas durante alguns meses para conceber a sua obra e denunciar na sua narrativa as mazelas vividas por aqueles indivíduos.
Acontece que com a quarentena e o isolamento social se tornou absolutamente inaceitável aquele encontro para jantar ou para lanchar em algum estabelecimento como lanchonetes, bares e restaurantes com amigos ou familiares. Então, se ampliou exponencialmente a utilização dos aplicativos de entregas de comida ou como é anglicizado por aqui o tal do delivery. Da mesma forma tem aumentado a quantidade de entregadores de bicicleta e de motocicletas, que acabam se expondo ao contágio do vírus e colocando as suas vidas em risco em possíveis acidentes de trânsito, pois há um limite de tempo para entrega que é necessário sempre superar por conta de alguma classificação através de estrelas, de recomendações ou reclamações dada a cada entregador que você, assim como eu, pode lhe certificar ou não no tal do aplicativo.
Acredito que você assim como eu, já solicitou uma pizza, um sanduíche ou qualquer outra coisa através de algum desses aplicativos. Ultimamente com a pandemia até compras de supermercados esses entregadores têm realizado. No supermercado aqui perto de casa já observei uma fila de rapazes com capacetes, de máscaras e com aquela mochila quadrada colorida de entrega nas costas. Até então, eu desconhecia esse tipo de serviço. Ultimamente, o grupo de trabalhadores de delivery tem se ampliado. Até pouco tempo se observava mais jovens, especialmente rapazes. Recentemente pessoas um pouco mais velhas e até mulheres têm ingressado nesse ramo. Antes de pandemia, isso era um pouco mais raro no ramo do serviço de entrega.
Podemos cogitar que o vem ocorrendo nos últimos tempos no país decorre de um enfraquecimento da nossa economia e o aumento do desemprego, que ao que parece que não se restringe à nossa realidade nacional. Mas com isso, veio o aumento da informalidade do trabalho, a valorização de um certo tipo de empreendedorismo e a precarização de muitos trabalhadores. Durante os últimos meses da pandemia, muitas pessoas perderam seus postos de trabalho e tiveram de se reinventar para sobreviver, para pagar suas contas e cuidar de suas famílias através de empregos casuais ou se encontram mesmo desempregadas. O certo é que podemos observar nas ruas do Rio de Janeiro um vai e vem de bicicletas e de motoboys o dia inteiro em qualquer canto da cidade.
Ao que parece os trabalhadores do Rio de Janeiro, assim como do nosso país e de tantos outros países, estão se reinventando nesse “novo normal” que tanto se fala por aí. O que aguardar após a pandemia? Existirão trabalhos formais em empresas como existiam até recentemente? Restaurantes, lojas e outros estabelecimentos retornarão ao que considerávamos como “normal”? E o tal do trabalho remoto por ocasião do avanço tecnológico também tem modificado as relações trabalhistas, então, continuarão existindo aqueles tradicionais escritórios e repartições públicas? Para alguns estudiosos é o surgimento de um novo paradigma no sistema capitalista, para tantos outros se trata de um retrocesso na história da luta pelos direitos dos trabalhadores.
É um debate que me recorda os estudos do sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett. Ele afirmou que o momento atual do capitalismo é caracterizado pela natureza de um “capitalismo flexível”. Nesta fase, a flexibilização do tempo é recorrente, há uma luta contra as burocracias trabalhistas e o trabalhador desconhece os riscos que estão tomando e não sabem aonde querem chegar, o que cria uma situação de ansiedade nas pessoas com a flexibilização de suas rotinas, que por sua vez estremece o senso de caráter pessoal. Entre as variadas discussões levantadas no seu livro A corrosão do caráter, ele questionou se estamos numa fase de crescimento ou de opressão. De certo, a sua análise vale como reflexão sobre o atual momento pandêmico e sobre como queremos vivenciar a nossa cidade e o mundo. Por ora, o vai e vem de entregadores continua nas portas dos meus vizinhos. Hoje não pedi pizza.
Luciene Carris é historiadora e escritora.