O nosso conto de aia
Textão de Luciene Carris
Em 2020, o Ministério da Educação completa 90 anos. O órgão foi criado no governo de Getúlio Vargas em 1930. Originalmente se chamava Ministério da Educação e Saúde Pública. Um dos ministros que ganhou maior proeminência foi Gustavo Capanema, que conduziu o ministério entre 1934 e 1945, por exatos onze anos. O político reuniu ao seu redor uma constelação de intelectuais de peso como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Anísio Teixeira e Heitor Villa-Lobos, entre outros.
Muitos permaneceram vinculados ao ministério até mesmo durante a fase mais autoritária, centralista e controversa do Governo Vargas, o Estado Novo (1937-1945). A estreita relação entre os intelectuais e a política de Vargas já foi alvo da pena de diversos estudiosos. O certo é que desde a sua criação assumiram a pasta da Educação o número de 54 indivíduos. No sítio eletrônico do Ministério da Educação é possível ler uma pequena biografia dos homens que estiveram à frente desta importante pasta. É possível constatar logo de cara a ausência dos nomes de mulheres, o que pode nos levar à diversas indagações sobre a participação feminina na arena política em papéis de destaque. Sem dúvida, é um dado que merece uma análise mais acurada.
A galeria de ministros mereceria, por sua vez, também um exame apurado. Por ora, não cabe aqui tal reflexão, mas o que pude constatar nessa resumida pesquisa foi que alguns deles não tiveram experiência na área da educação. Alguns não se destacaram na elaboração de políticas educacionais, outros tiveram até alguma relevância. Por outro lado, independentemente da orientação ideológica e política, alguns nomes se sobressaem como Darcy Ribeiro, Paulo Renato de Souza, Aloizio Mercadante, Fernando Haddad e Renato Janine Ribeiro.
A instabilidade política e social tomou conta do país, aprofundando ainda mais a polarização ideológica entre os brasileiros. Vale ressaltar que a polarização não é algo recente. Porém, atravessamos talvez a maior crise de saúde pública na nossa história e nem mesmo com a pandemia do Covid-19 tal antagonismo foi amenizado. Seria ingenuidade considerar que atitudes e sentimentos de solidariedade, de empatia, de tolerância ou de compreensão fossem compartilhados pela brava gente brasileira. Pelo contrário, a controvérsia passou a reinar livremente acompanhada da disseminação de notícias falsas e de falas de ódio, bem como pela contradição de notícias que agravam a desinformação sobre o vírus misterioso.
O certo é que desde 2018, assumiram a pasta figuras consideradas controversas como o colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodríguez, e Abraham Weintraub. Sem falar da brevíssima passagem de cinco dias do economista Carlos Alberto Decotelli da Silva. Curiosamente, na galeria de ministros da página do Ministério da Educação até a publicação deste texto, não foi publicada uma biografia sobre a passagem de Weintraub no ministério. A sua saída controversa foi anunciada nas redes sociais do dia 18 de junho no momento em que virou alvo de uma investigação policial, fato este seguido por uma súbita viagem aos Estados Unidos divulgada nos diversos veículos de comunicação.
Os brasileiros e brasileiras vêm convivendo nos últimos tempos em meio à polêmica, que parece que virou rotina em nossas vidas. Sem ignorar temos que nos virar sobrevivendo ao coronavírus. Diariamente sinto que acordamos, esperamos pela próxima notícia que viralizará nas redes sociais. E assim, muitos de nós são atingidos pelos sentimentos de indignação e de impotência. Em um ano e meio, três ministros caíram. Recentemente, depois de muita controvérsia como não poderia deixar de ser, um novo nome foi indicado para o Ministério da Educação, se trata de um pastor presbiteriano, professor e advogado que pronunciou anteriormente declarações controversas sobre as mulheres, as crianças e a sexualidade.
Porém, ele não parou por aí, afirmou em outra oportunidade que as universidades ensinam o “sexo sem limites”. É bem verdade que ele não caiu de paraquedas, já estava atuando como membro da Comissão de Ética ligada à presidência. A estreita relação entre religião e política pode levar o país a um retrocesso democrático. Entretanto, vale recordar que um dos princípios da Constituição Federal de 1988 é a laicidade, ou seja, a desagregação da religião e de seus valores sobre atos governamentais. Não temos uma bola de cristal para descobrir o que virá em seguida. Contudo, a conjuntura atual não assegura ares de otimismo. Se observa, ainda, um quadro persistente de desvalorização da cultura e das artes, e, dos profissionais ligados à educação e da classe de artistas.
A literatura tem um papel fundamental na formação das pessoas, além de trazer enriquecimento intelectual e cultural. Sem ignorar o prazer e a possibilidade de levar à outras dimensões imaginativas desenvolvendo, portanto, o senso crítico. Em 1985, a escritora canadense Margareth Atwood publicou uma obra que recebeu o título em português de O conto de aia e se tornou mundialmente famoso por conta de um seriado que inspirou. O romance distópico tem como cenário os Estados Unidos depois da ocorrência de uma revolução de caráter fundamentalista cristã.
O país se transformou numa república marcada pela presença de um governo autocrático e teocrático baseado nas interpretações do Velho Testamento. O livro foi publicado na década de 1980, depois da Revolução Islâmica ocorrida em 1979 no Irã, que se caracterizou pela opressão, pelas perseguições políticas e pela violência contra as mulheres. Certamente, aquele cenário político moveu a escritora. A narrativa um tanto assustadora não deixa de ser tão atual. Infelizmente, parece se aproximar em alguma medida da nossa realidade, quando ouvimos ou lemos aqui e ali nas redes sociais e nos noticiários discursos que remetem ao livro ou ao seriado. Não temos, como comentei, uma bola de cristal, mas vale a pena como reflexão e para ficarmos de olhos abertos.
Luciene Carris é historiadora e escritora.